Retrocesso civilizacional do Neoliberalismo e opções no século XXI

DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO NO OCIDENTE

Retrocesso Civilizacional

Felipe Maruf Quintas

Acostumados por séculos à sujeição colonial, para nós, brasileiros, o mundo jamais incluiu a Ásia e a África; eram somente o europeu e o americano que constituíam nossa História Geral. Sequer o Brasil, que nasceu como o segundo maior país do mundo em 1822, era visto por nós como parte da História Geral. Éramos periferia, e assim nos acostumamos a enxergar a nós e a todo o mundo externo ao Atlântico Norte.

De tal forma esta compreensão ficou arraigada em nossa mente que precisamos nos justificar para trazer, na perspectiva mundial, os pensamentos e acontecimentos asiáticos e africanos. Mas não estaríamos aqui, hoje, se os europeus não tivessem se apropriado das invenções chinesas, fundamentais para chegarem e conquistarem as Américas, como a impressão, a bússola e as fabricações da pólvora e papel, apenas quatro, das muitas que são do nosso uso cotidiano, a exemplo da seda, do macarrão e do carrinho de mão.

Muito antes do Atlântico, era a Eurásia o centro do mundo. Até meados do século XIX, somente a China era economicamente maior ou, no mínimo, equivalente a toda a Europa. O imperialismo ultramarino europeu, sustentado pelas alianças bancárias-reais, organizou o capitalismo enquanto sistema-mundo, periferizando grandes impérios africanos e orientais.

O liberalismo surge e se desenvolve no contexto de expansão colonial europeia, inicialmente para justificar a abertura dos mares à pirataria anglo-batava, depois para legitimar a captação dos recursos naturais e dos mercados consumidores de além-mar pelas potências industriais ocidentais. De todo modo, o liberalismo nunca disse respeito às liberdades sociais, mas ao laissez-faire dos grandes interesses capitalistas frente aos povos, sociedades e culturas. Não haveria liberalismo sem colonialismo.

O liberalismo pode ser assim compreendido, dentro do Renascimento. Este durou cerca de 300 anos, sendo as duas primeiras fases, “Trecento” e “Quatroccento” praticamente artísticas, como reação humanista ao dogmatismo religioso vigente na Idade Média. O liberalismo não era ainda uma doutrina político-econômico, mas um estilo aristocrático de pensamento e de conduta, caracterizado pela benevolência e magnanimidade e pela apreciação dos conhecimentos humanísticos.

Não é o liberalismo a que nos referimos, que surge com a teoria do “mare liberum” do holandês Hugo Grotius (1583-1645) e é sistematizado pela primeira vez pelo filósofo inglês John Locke (1632 –1704), acionista da Royal African Company, uma das principais corporações escravagistas da época.

A filosofia de Locke está calcada numa “liberdade natural do homem” que se corporifica na propriedade e se institucionaliza no direito dos proprietários de definirem e redefinirem os governos, a seu bel-prazer. O contratualismo capitalista que lhe era inerente influenciou as “revoluções do século XVIII”, quando os burgueses se insurgiram contra os comandos aristocráticos, baseados em critérios de honra e de nascimento, não de riqueza.

Porém é necessário bem entender que as restrições que incomodavam este calvinista empirista diziam respeito às imposições religiosas. Sua própria vida é uma busca da certeza religiosa. Mas era, indiscutivelmente, um estudioso de enorme talento como se lê em sua obra sobre a organização da sociedade, questões sobre a propriedade e o trabalho, até sobre a educação e epistemologia.

Também nascidos no século XVII, temos como pensadores liberais, denominados iluministas, dois franceses, mais voltados para a sociedade e sua organização: Charles-Louis de Secondat, ou Barão de Montesquieu (1689-1755) e François-Marie Arouet, apelidado Voltaire (1694-1778). Economicamente, divergiram dos preceitos liberais, mas, politicamente, contribuíram para ele, ao firmarem princípios de “tolerância” e de “moderação” que favoreciam o exercício do poder socioeconômico capitalista.

No bojo iluminista, os principais defensores do liberalismo foram os fisiocratas, que defendiam a junção do laissez-faire econômico com o despotismo governamental. François Quesnay (1694-1774) enxergava na otomana Constantinopla, onde o sultanato permitia o livre-comércio, o principal exemplo a ser seguido. Para eles, que primeiro sistematizaram a ciência econômica, toda a riqueza provinha da agricultura e se distribuía pelo comércio. A função do Estado seria apenas a de salvaguardar a ordem necessária ao encaminhamento dos interesses privados. Assim, se colocaram em oposição às regulamentações industrialistas próprias do mercantilismo, primeira expressão desenvolvimentista moderna.

“A concepção iluminista não se limitava a enxergar a razão e a ciência como atributos e exercícios individuais, mas como princípios morais para a reorganização das instituições sociais. O progresso histórico das sociedades dependeria do quanto de razão e ciência elas incorporassem. O Iluminismo era otimista em relação à capacidade humana de estabelecer formas sociais e políticas que encarnassem o progresso racional e científico”, enuncia Felipe Maruf Quintas (Monitor Mercantil, com Pedro Augusto Pinho, “Ensaios sobre as Governanças: Iluminismo Construtor de Estados”, 24 de janeiro de 2024, Ano CVII, nº 29.535).

Com o iluminismo veio o Estado Nacional que, para cumprir suas obrigações, trouxe outro nível de restrições aos povos ocidentais: aquelas que entre eles mesmos se estabeleciam para a harmonia de sociedades formada de múltiplas consciências e recursos. Surgem também os ideólogos da libertação do trabalho em face ao capital e a política fica cada vez menos evidente para o homem comum.

O liberalismo econômico acusa o Estado de ineficaz, de não garantir a plena liberdade, apenas não especifica que esta liberdade não se estende igualmente aos direitos do trabalhador. Direitos trabalhistas, de grupos de trabalhadores, para os liberais clássicos, eram obtidos em detrimento dos direitos individuais, porém eles aceitavam que as empresas conquistassem direitos à custa da desigualdade do poder de barganha entre empregados e empregadores.

Com vitórias socialistas e sociais-democratas na Europa, o liberalismo precisou se reformular; ao invés de um projeto afirmativo, da liberdade, opta pela formulação negativa, da restrição à presença do Estado.

No entanto, as complexidades das relações no mundo industrial, cibernético, termonuclear, não podem ser resolvidas apenas nas relações do mercado. E os propositores neoliberais: Ludwig von Mises (1881-1973), Friedrich von Hayek (1899 -1992), Milton Friedman (1912-2006), e outros menos votados, estavam longe de propor a sociedade opulenta, ao contrário, insistem na monetização das relações sociais que levou à concentração de renda e ao aumento da miséria e das guerras. Lembremos que o filósofo alemão, contemporâneo de Adam Smith, Immanuel Kant (1724-1804) afirmava: “o espírito do comércio não coexiste com a guerra, e cedo ou tarde este espírito domina todas as pessoas. De todos os poderes que pertencem a uma nação, o poder financeiro é o mais confiável em forçar as nações perseguirem causas nobres de paz” (“Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf”, “Para a paz eterna. Um rascunho filosófico”, 1795).

O neoliberalismo transformou-se na oposição simétrica do marxismo, pregando a universalização das regras e a unipolaridade do poder, tal qual o comunismo que se propusera combater. O comunismo sobreviveu 74 anos, de 1917 a 1991, e, se consideramos as desregulações da década de 1980, o neoliberalismo já se esvai aos 44 anos de existência, conforme se constata nas greves pela Europa, nas falências, na desindustrialização da Alemanha, nas revoltas dos agricultores em quase todos países europeus e na economia e na política estadunidense.

A MULTIPOLARIDADE A AS OPÇÕES DO SÉCULO XXI

“O chamado Ocidente, com seus tiques coloniais, com hábito de fomentar conflitos entre os povos por todo o mundo, não busca simplesmente restringir nosso desenvolvimento. No lugar da Rússia, eles precisam de um espaço dependente, decadente e moribundo onde possam fazer tudo o que queiram”, (Vladimir Putin, discurso no Parlamento da Rússia, em 29/02/2024).

A Rota da Seda foram caminhos interligados através da Ásia, meridional e central, usados no comércio entre o Extremo Oriente, o Oriente Médio e a Europa. Os produtos eram transportados por caravanas e embarcações que ligavam comercialmente o Extremo Oriente e a Europa. Esses percursos foram estabelecidos a partir da Ásia e foram fundamentais para as trocas entre estes continentes até à descoberta do caminho marítimo para a Índia (1498). A rota da seda conectava a China à Antioquia, na Ásia Menor. Sua influência expandiu-se até à Coreia e Japão. Formava a maior rede comercial da Antiguidade e da Idade Média, o que tornava a China a liderança econômica eurasiática, de forma pacífica.

Acostumado com o imediatismo da Era Digital, fica-se muitas vezes difícil entender que a antiga Rota da Seda foi uma construção milenar e surgida tanto no sentido ocidente africano – oriente próximo, quanto no extremo oriente – ocidente. O protagonismo chinês se deve às inovações, pois o mais comum eram transportes de produtos primários.

Outro evento histórico ocorreu na China do século XI, pré-renascentista europeu: o racionalismo prático, fundamentado na experiência e atitude crítica diante de ideias e teorias. A filosofia naturalista dominará o pensamento chinês doravante. Recuperam-se os ensinamentos de Lao Zi e Kong Fu Zi (Confúcio), do V século antes da Era Cristã, anteriores a Sócrates (470 a.C.-399 a.C.).

Em publicação surgida em 1960, “The China Quarterly”, por editora soviética, lê-se, em tradução livre, a seguinte comparação:

“As comunas chinesas diferem das fazendas coletivas soviéticas em quatro aspectos. Em primeiro lugar, são maiores em termos de adesão. Em segundo lugar, realizam produções industriais, além das agrícolas. Em terceiro lugar, eles são organizados – embora isto varie muito de uma comuna para outra – muito mais na base de vida coletiva do que os kolkhozes soviéticos. Em quarto lugar, não são apenas unidades econômicas, são também militares” (Geoffrey Hudson, “The Chinese Communes”).

Ou seja, trata-se de estrutura descentralizada de gestão do Estado. O ingresso no sistema político é opção do cidadão chinês, sempre iniciando em órgão da base administrativa. O território chinês é dividido em vinte e três províncias, cinco regiões autônomas, quatro cidades administrativas e duas zonas administrativas. Assim começará a carreira, que perpassará obrigatoriamente toda hierarquia, e poderá levá-lo ao topo: o “Politburo”, órgão de decisão intermediário entre o “Comitê Permanente”, com sete integrantes, e o “Comitê Central do Partido”, com 376 representantes.

Na perspectiva chinesa, a Nova Rota da Seda ou Iniciativa Cinturão e Rota tem o conteúdo principal de coordenar políticas, conectar infraestruturas, integrar financeiramente e promover livres fluxos comerciais e entendimentos entre os povos. Até o início de 2019, a China já tinha assinado mais de 150 acordos, envolvendo 106 países e 29 organizações internacionais, cobrindo a Ásia, a África, a Europa, a América Latina e o Caribe, e o sul do Pacífico.

O mais relevante da Iniciativa é o respeito às individualidades nacionais, ou seja, às diferenças culturais e políticas entre os parceiros dos acordos. Trata-se, efetivamente, da construção de um novo mundo, multipolar.

Na conferência realizada em 28 de junho de 2014, por ocasião do 60º aniversário da publicação dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica, Xi Jinping assinalou que é preciso adaptar-se às mudanças no quadro das forças internacionais e promover reformas para o sistema de governança. Este novo sistema deve ter a contribuição de todos os países, não apenas participando mas decidindo cada passo. Não importa quão grande ou pequeno, fraco ou forte, rico ou pobre, todas os países devem atuar e a China continuará desempenhando seu papel de grande país, populoso, responsável, para o novo desenvolvimento que resultará da governança multipolar.

Embora esteja mais avançada a Iniciativa do Cinturão e Rota, a África, sempre afastada das decisões globais, vem desenvolvendo um segundo movimento, mais voltado para suas formações culturais, de independência.

Ele ocorre, em vários pontos do continente, e em particular nas antigas colônias francesas, da África Ocidental, na região do Sahel: Mali, Níger, Guiné, Burkina Faso e, mais a leste, o desmembramento do extinto Sudão Anglo Egípcio, o Sudão do Sul.

Também na América Latina surgem inovadoras experiências políticas, socioeconômicas, na Bolívia, na Venezuela, na Nicarágua, cujos resultados e métodos ainda é prematuro avaliar.

Porém tudo se junta em oposição à bipolaridade capitalismo-comunismo, do século XX, e à unipolaridade neoliberal financeira já em queda neste século XXI.

As finanças apátridas colocam seus imensos recursos nos paraísos fiscais para corromper políticos, empresários, partidos das diversas inclinações ideológicas, e, principalmente, as mídias e sistemas educacionais, para conquistarem corações e mentes que mantenham seus ganhos e poder.

A nós, patriotas e nacionalistas, cabe ir desvendando e denunciando os passos para conquistarmos o mundo da paz e do progresso de todos.

Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

 

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