A História recente mostra uma metamorfose, um desvirtuamento e, por fim, o fenecimento do Estado.
Bruna Frascolla
No último texto, vimos que o neoliberalismo surgido na Áustria no Entre-Guerras mudou a função do Estado: ele deixou de ter como finalidade o bem comum e passou a ter como finalidade a proteção do mercado e da propriedade privada pelo planeta. Mencionamos a criação da OMC como o coroamento desse processo. Uma outra coisa interessante que vimos por alto (acompanhando o historiador Quinn Slobodian) é que desde a década de 1940 os neoliberais já tentavam alargar os direitos humanos da ONU com o fito de desvirtuá-los. Se o direito ao emprego era uma fantasia anti-econômica, o direito à fuga de capitais deveria ser assegurado pelos mecanismos multilaterais. O autor não toca nesse assunto, mas não deixa de ser oportuno apontar que o wokismo é basicamente a deturpação dos direitos humanos por meio da eterna expansão. Em vez de direito a saneamento básico e emprego, o woke prega o direito a ver uma mulher negra fazendo propaganda de uísque (a “representatividade”), ou reserva de vagas para transexuais.
Uma coisa que não mencionei foi, ainda, a controversa União Europeia. Para alguns neoliberais, é uma utopia concretizada; para outros, estaria fadada ao protecionismo toda organização que não seja global. Um mercado pan-europeu serviria, no frigir dos ovos, para que os produtores europeus, menos eficientes, se protegessem dos agricultores do resto do mundo. Os neoliberais queriam criar uma divisão internacional do trabalho na qual cada país teria seu papel. Hoje é bem fácil ver que, nesse esquema, não cabe à Europa Ocidental a produção de alimentos.
Essas coisas estão em Globalistas, de Quinn Slobodian. Já em Capitalismo Destrutivo, o arco temporal é mais recente: vai da década de 1970 – quando Milton Friedman se maravilha com Hong Kong – até o pós-pandemia, ou seja, hoje. Vivemos tempos em que Milton Friedman já parece estatista demais porque não pede o fim do Estado, e seu neto, Patri Friedman, imagina países privados construídos em águas internacionais, explicando tudo em evento financiado por Peter Thiel. Nessa história, o Estado passa de protetor da propriedade no mundo global à inexistência, já que esse papel pode ser desempenhado por associações contratuais anarcocapitalistas.
Hong Kong para o mundo
Milton Friedman vai a Hong-Kong, então um território governado pela Inglaterra. O que Friedman enxerga lá é o estrondoso sucesso da combinação entre capitalismo e autoritarismo, e pensa que pode imitar o modelo. O exemplo mais famoso dessa combinação é o Chile de Pinochet, cheio de Chicago Boys pupilos de Friedman. No entanto, a fórmula não é tão simples assim, já que Hong Kong contava com a mão de obra da China continental (que mantinha o trabalho barato) e com um porto formidável. Além disso, a Hong Kong criada pelos britânicos era um ótimo paraíso fiscal e seu propulsor econômico inicial foi o ópio imposto aos chineses. Daí não se segue, portanto, que o modelo possa ser replicado mundo afora, pois nem todos os países têm mão de obra barata, nem um acúmulo de capital causado pelo comércio de drogas, nem um porto privilegiado.
O que Friedman conseguiu vender como modelo de exportação foi, então, a escassez de impostos, a receptividade ao capital em fuga e a falta de democracia. Na Inglaterra, umas idiossincrasias legais do direito feudal, permitiram que Thatcher diminuísse os mecanismos democráticos locais e criasse, na City of London, Canary Warf, uma região com leis próprias que visava atrair o capital financeiro, ou em fuga. Aquilo que a Inglaterra fez com Hong Kong pelo colonialismo, replicou em âmbito doméstico graças a um arcaísmo medieval.
Mas Hong Kong teve outro traço de exportação que lhe foi dado não pelos ingleses, mas sim por Deng. Com a volta de Hong Kong à China, Deng decidiu manter o sistema capitalista naquele pedaço e declarou que a China seria um país com dois sistemas, o capitalista e o comunista. Assim, em 1997, a China supera a oposição entre capitalismo e comunismo e proclama, simplesmente, que ela será um país comunista com uma zona administrativa especial na qual vigora o capitalismo. E mais: esse modelo é replicável, tendo a China criado mais uma porção de zonas especiais e gerado, assim, muita riqueza. Na década seguinte a essa transformação, a China despontaria como nova potência econômica emergente.
Com a normalização das zonas, tornou-se senso comum, entre os liberais, que a função do Estado era “atrair investimento”, competindo para ver quem oferece mais vantagens ao capital. No frigir dos ovos, isso desestabiliza os Estados nacionais, já que o pagamento de impostos passa a ser, em alguma medida, opcional. Ninguém sabe como seria a economia dos paisecos (como Liechtenstein) e das zonas especiais se, por algum motivo, a fuga de capitais não existisse. Não obstante, os neoliberais e os anarcocapitalistas perderam aquele senso de harmonia global que organizações como a OMC tentavam criar, e passaram a pensar em termos de competição. Se com os neoliberais de antes a função dos Estados era obedecer a organizações globais com o fito de proteger a propriedade de maneira uniforme mundo afora, nessa nova fase, há uma guerra de todos contra todos, na busca por adular o capital.
Uma coisa relevante que interferiu nessa mentalidade foi o colapso da União Soviética. De repente, um grande Estado morria e dava origem a uma porção de países miúdos, os quais, a seu turno, davam ocasião para experimentações.
Da zona à fantasia
Se os neoliberais já tinham um penchant pela experimentação, os anarcocapitalistas vão ainda mais longe. Milton Friedman, liberal, era pai de David Friedman, pai do supracitado Patri Friedman. Filho e neto são anarcocapitalistas. E, para se ter uma ideia, David Friedman tem uma personalidade alternativa que é um berbere da Idade Média: antes de ser moda, os anarcocapitalistas fazem RPG e cosplay, porque sua finalidade é experimentar todas as sociedades possíveis para dar um jeito de provar que sua teoria política não é uma utopia, tem precedentes e é viável. Assim, há tentativas como a de recriar uma instituição medieval irlandesa de compra e venda de sentenças, ou então de criar uma tribo somali de brancos, porque as tribos somalis seriam especialmente aptas para viver sem Estado. Seria um mundo mundo de experimentação, no qual todos fazem testes para ver quem se sai melhor numa competição: é planejamento, mas em pequena escala.
Nesse mundo de competição, todos viveriam “votando com os pés”, mudando-se de país para país, ou de cidades privadas para cidades privados. Não seria viável tratar de tudo o que os anarcocapitalistas já fizeram nesse sentido; o que importa é que as tentativas já existem, e Slobodian mapeia-as. Menciono por alto o experimentalismo com bantustões na África do Sul e a criação da micro-nação de Orânia no mesmo local. Na América Latina, houve as cidades charter em Honduras.
Também importa mencionar que, com a dissolução da União Soviética, os anarcocapitalistas e os neoliberais viram na secessão o jeito ideal de destruir o Estado nacional soberano. Ao meu ver, isso ajuda a esclarecer o ânimo da OTAN para apoiar minorias étnicas que se volte contra Estados nacionais.
Mas é bom recapitularmos, então, que a História recente mostra uma metamorfose, um desvirtuamento e, por fim, o fenecimento do Estado. No começo a função do Estado era promover o bem comum. Com os neoliberais, a função do Estado era proteger a propriedade, inserido numa ordem global de capitais móveis. Por fim, o Estado – ou o que quer que esteja no lugar dele – não tem nenhuma função intrínseca; ele pode perecer e ser substituído por outro concorrente. O Estado, neste estágio do liberalismo, tem de lutar pela sobrevivência, e seu êxito depende de agradar aos clientes. De fato, o liberalismo cumpriu uma profecia marxista.
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