Mais de 2 toneladas de fósseis que seriam vendidas a colecionadores particulares foram trazidas de volta ao país
Por Gabriel Gama | Edição: Alexandre Barbosa
Dentro de um contêiner atracado em um porto no norte da França, havia algo que pertencia ao povo brasileiro. Duas toneladas e meia de fósseis extraídos ilegalmente do sertão cearense e embalados em jornais do Diário do Nordeste estavam prestes a serem vendidas a colecionadores particulares e, quem sabe, alcançariam acervos de museus europeus sem levantar qualquer suspeita.
As autoridades francesas descobriram a carga contrabandeada em 2013. Os 998 fósseis de plantas, peixes, insetos, tartarugas e dinossauros nunca deveriam ter saído do Brasil. Mas eles só retornaram ao país em dezembro de 2023, depois de um processo judicial internacional que se arrastou por uma década.
A restituição desse patrimônio único, avaliado em mais de 1 milhão de euros, só foi possível porque o governo do Ceará desembolsou a quantia de R$ 330 mil para contratar o seguro do transporte dos fósseis de volta ao território nacional. “É como se fosse pagar um resgate por algo que foi roubado de nós”, afirma Juan Cisneros, professor de paleontologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Nascido em El Salvador, ele vive a maior parte da vida no Brasil e se dedica a pesquisar e denunciar o tráfico de fósseis e o colonialismo científico.
Esse conceito se aplica quando a ciência de um país é feita majoritariamente fora dele, como se a própria nação não tivesse condições de desenvolver pesquisas e produzir conhecimento. Na América Latina, teve início no período da colonização, já que os colonizadores costumavam levar animais, objetos e minerais que tivessem valor monetário, histórico ou científico para as sedes dos impérios europeus.
Nem mesmo a paleontologia, área da biologia que estuda a vida do passado remoto da Terra, consegue escapar disso. “As ciências naturais têm sua consolidação justamente na época da exploração colonial e, por isso mesmo, já nascem colonialistas”, avalia Cisneros. Se reconstituir a vida que existiu no planeta há milhões de anos é um desafio da paleontologia, essa tarefa se torna quase impossível quando os vestígios estão a um oceano de distância de onde foram encontrados. Tente montar um quebra-cabeça com peças espalhadas pelos continentes e o resultado final será um quadro repleto de lacunas.
Um quebra-cabeça espalhado pelo mundo
Os fósseis brasileiros recuperados da França em 2023 estão hoje no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, no sul do Ceará. A cidade está inserida na Bacia do Araripe, geoparque mundial da Unesco conhecido como um dos cinco sítios paleontológicos do mundo mais ricos em evidências do período Cretáceo (entre 145 e 65 milhões de anos atrás). Esse é, justamente, o local de onde partiram os fósseis descobertos no contêiner.
O grande diferencial da região está no grau de preservação dos vestígios encontrados. “Quando a gente fala em fóssil, você pensa só em osso, mas aqui [na Bacia do Araripe] não é só esqueleto. A gente tem a asa da libélula, o coração do peixe, a crista do pterossauro, são detalhes que não tem em outros lugares”, explica Allysson Pinheiro, diretor do museu de paleontologia que recebeu os 998 fósseis repatriados.
A Bacia do Araripe é tão rica em fósseis que, durante a década de 1970, os achados eram vendidos em feiras livres, como se fossem frutas ou legumes. Nas casas, eram objetos decorativos e usados até mesmo como peso de porta.
Essa abundância despertou o interesse de cientistas estrangeiros, que passaram a frequentar Santana do Cariri e pagavam quantias ínfimas pelas preciosidades encontradas pelos trabalhadores locais. No ápice da exploração, caminhões carregados de fósseis deixavam a cidade e partiam de navio para a Europa e os Estados Unidos, sem deixar registros. “Naquela época, ninguém da região entendia que aqueles fósseis eram tão raros e valiam tanto dinheiro”, diz Pinheiro.
Desde 1942, a legislação brasileira estabelece que os fósseis são propriedade da União e, portanto, não podem ser comercializados nem transportados para fora do país sem uma autorização específica.
Tão antiga quanto a corrida pelos fósseis no Ceará é a desobediência à lei. Uma pesquisa publicada em 2022 na revista Royal Society Open Science estimou que 88% dos fósseis da Bacia do Araripe descritos em publicações científicas estão em museus estrangeiros, uma clara evidência do colonialismo científico. Mais da metade desses artigos não tiveram a participação de pesquisadores brasileiros.
Fósseis exilados também sentem saudade de casa
O processo judicial pela posse dos fósseis interceptados na França se baseou na lei de 1942. O mesmo ocorreu na mobilização pela recuperação do dinossauro Ubirajara jubatus, datado de 100 milhões de anos atrás e também extraído ilegalmente do Ceará. Considerado o dinossauro mais antigo da Bacia do Araripe, o exemplar foi devolvido ao Brasil pelo governo da Alemanha em julho de 2023, que reconheceu as circunstâncias questionáveis que levaram o fóssil a pisar em solo europeu.
Fruto de anos de negociação, a repatriação se tornou um marco no debate sobre restituição de patrimônio histórico-cultural e movimentou as redes sociais na época, com a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil). Hoje, o dinossauro, antes exilado, faz parte do acervo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.
O retorno dos fósseis para o local exato de onde foram retirados não é mera coincidência. Juan Cisneros explica que o fóssil é uma riqueza, um item de valor cultural que chama atenção do público, contribui para a cultura e educação local, gera renda e atrai turismo. “Quando esses fósseis não estão no Brasil, estamos perdendo todos esses benefícios. Temos que lutar pela preservação e para que eles estejam, de preferência, no lugar mais próximo de onde foram encontrados”, analisa.
Prova dessa importância é a visitação expressiva do museu de paleontologia de Santana do Cariri: a instituição recebe entre 20 e 30 mil visitantes por ano, número superior à população do município cearense (cerca de 16 mil habitantes, segundo o Censo 2022).
“O museu é um grande suporte econômico para a cidade. Nossa região tem enormes desafios socioeconômicos, IDHs baixos, precisa de motores para o desenvolvimento. É por isso que a gente não arreda o pé da discussão sobre repatriação de fósseis, é muito importante para o território”, afirma Allysson Pinheiro, diretor do museu.
Contando heranças
Um dos argumentos usados pelos europeus e norte-americanos para justificar a apropriação dos fósseis da América Latina é a alegação de que eles são objetos anteriores à presença humana no planeta. Como se, por não terem coexistido com pessoas, os países não tivessem o direito de reivindicar a posse dos fósseis. Essa linha de pensamento é defendida por cientistas como John Nudds e John Martin.
Nudds, da Universidade de Manchester, publicou um artigo em 2001, na revista Geological Curator, em que desafiou seus colegas a ignorar o código de ética da Associação de Museus do Reino Unido e afirmou que “os fósseis não guardam nenhuma relação com o país no qual foram preservados”. No mesmo periódico, Martin assinou um artigo em 2018 e defendeu a tese de que “fronteiras geopolíticas não existiam quando os organismos fossilizados eram vivos, logo, os fósseis não possuem identidade nacional”.
Juan Cisneros se opõe radicalmente a essas ideias: “O fato de algo ser mais antigo que nós não significa que não seja nosso dever cuidar dele, é algo que a gente herdou. Um país que herda um patrimônio tem a missão de zelar por ele”.
Felizmente, o debate está evoluindo. “Nem sempre foi assim, mas hoje conseguimos discutir abertamente com instituições, países e a comunidade científica internacional e mostrar que esses fósseis são daqui, são um direito do povo do Brasil e podem mudar a realidade da população. Eles nunca deveriam ter saído do país, mas os que saíram merecem retornar”, complementa Allysson Pinheiro.