Bolsonaro é filho direto da irresponsabilidade dos Barrosos, Moros e Dallagnols, dos diretores de redação, dos donos de grupos de mídia, de militares que perderam o pudor, de lideranças políticas que não tiveram paciência de retomar o poder pelo voto
Peça 1 – a teoria e a realidade
Uma das implicâncias que acumulei na minha carreira jornalística foi em relação a intelectuais livrescos, incapazes de utilizar os princípios que supostamente dominam na análise da realidade. Só aceitam a realidade abstratamente quando ela aparece em forma de livro – e, de preferência, aceito pelo sistema – e quando endossada pela maioria.
No início da Lava Jato, na visita da Força Tarefa aos Estados Unidos, já havia indícios da influência do Departamento de Justiça na operação. No entanto, em maio de 2018, com todos os sinais no horizonte, cientistas sociais para se mostrarem “modernos” tratavam de classificar as teses de interferência de “teoria conspiratória”.
Não é prerrogativa dos cientistas sociais. Os economistas repetiram, em 20 anos, os dois maiores desastres da história recente do país – a explosão de juros do início de 1995 e o pacote Levy, de 2015. Em ambos os casos seguiam a cartilha – independentemente da realidade econômica e social em que a teoria seria aplicada. Agiram como o médico que receita doses de antibiótico iguais para adultos e crianças.
Essa desmoralização da análise e da informação está na raiz do que viria a ganhar a forma de bolsonarismo e que prosseguirá vivo e fatal como uma cobra cascavel, minando todos os esforços de tentar recuperar o país para a contemporaneidade.
Peça 2 – como se formam as ondas
O processo psicológico que explica a timidez em entender a crise de 1995, os efeitos da Lava Jato, a inação autodestrutiva de Paulo Guedes, é a mesma que levou a ondas como a que sacrificou os donos da Escola Base.
Desafiados a explicar o fenômeno, a cada novo evento, a mídia – e seus especialistas, os cabeças de planilha e os cientistas de papel – saem correndo atrás da primeira interpretação, buscando a faixa de menor risco através de dois expedientes.
O primeiro, seguir o mesmo padrão de coberturas similares, mesmo quando se vive situações excepcionais, isto é, sem precedentes comparáveis – como o fim da inflação do Real ou a crise de 2008.
O segundo, usar a explicação mais acessível ao leitor que, em geral, é a mais superficial e descontextualizada. Cria-se, então, a onda em cima da primeira versão, e amarram-se todas as opiniões posteriores.
Se disser a maior estultice do mundo, mas estiver em companhia da maioria, não será cobrado. Se defender uma posição inovadora ou minoritária, será questionado de todas as formas, e precisará de argumentos seguros para se defender.
O efeito manada, que tanto criticam no bolsonarismo, é companheiro de cabeceira desse pessoal.
Os que ousam ir contra a maré vivem dois momentos. Na primeira etapa, são vistos com total desconfiança. Depois que as teses são assimiladas, há uma multidão aderindo, diluindo seu pioneirismo.
É por isso que, em todas as discussões, a maioria dos interlocutores procura a faixa de menor risco, que é acompanhar as ondas. No Brasil esse movimento foi acentuado pelo populismo da mídia, de não entrar em dividida contra os consensos.
Peça 3 – a importância da análise empírica
Mas não apenas isso. Há uma enorme mediocridade, uma incapacidade crônica dos cabeças de planilha e dos cientistas de papel de aplicar conceitos aos dados da realidade. Se a realidade não bate com o livrinho, abole-se a realidade. Isso não é ciência.
Lembro-me do início do Plano Real. Abriu-se a economia, apreciou-se violentamente o câmbio e ficou-se aguardando a entrada das importações, para segurar pressões de preços. E as importações não entravam, para desespero dos economistas do Real.
Na época, escrevi um artigo mostrando que havia uma defasagem entre abertura de mercado e entrada das importações. Seria um tempo para identificar produtos importáveis, fornecedores externos, demanda interna.
O então Ministro do Planejamento José Serra me telefonou perguntando se havia lido os trabalhos do até então desconhecido Paul Krugman – que começava a desbastar esse tema. Não, apenas fui dar uma palestra para um grande atacadista de Uberlândia e ele me contou. Ou seja, bastaria a qualquer dos brilhantes economistas do Real chamar um atacadista e perguntar o óbvio. Mas ficaram esperando os estudos de Krugman.
André Lara Rezende levou vinte anos para entender e defender a relevância da análise empírica, especialmente na identificação das correlações na economia, em eventos extraordinários.
Peça 4 – a lógica da homogeneização da análise
Essa falsa ciência – de se basear em manuais de uso geral, sem se debruçar sobre as características específicas do país -, foi utilizada exclusivamente para a universalização de normas favoráveis ao capital financeiro.
Usa-se, então, política monetária para lumbago, dor de dente e pneumonia. Uma economia continental, complexa como a brasileira, ficou restrita às mesas de operação.
Tome-se o fenômeno da inflação. Há inúmeros fatores que podem pressionar preços, quebras de safra, preços de comercializáveis, interrupção de cadeias de produção, aquecimento da demanda. A formação de preços passa por grandes grupos, pequenas empresas, cadeias produtivas agrícolas, aluguéis, serviços pessoais, estado de espirito do consumidor, níveis de inadimplência. Em países racionais, governos atuam sobre problemas de oferta, quebra de safras, quebra de cadeias produtivas, efeitos do câmbio etc. Mas como o Estado foi demonizado, e o mercado exige homogeneização de análises, qualquer combate à inflação passa exclusivamente pelo Banco Central.
Por trás dessa insuficiência de análise está uma dependência férrea da noção do equilíbrio geral da economia. Monta-se um mundo fictício em que só existem mesas de operação justamente para facilitar o trânsito de capitais, permitindo aos gestores comparar indicadores semelhantes de todos os países. Indicadores, aliás, muitas vezes sem nenhuma relação com a economia real, mas que permitem a sincronização de expectativas do mercado – exclusivamente do mercado, saliente-se.
Criaram-se fantasias, então, como a taxa de juros de equilíbrio. Anos atrás, quando ganhou o prêmio de Economista do Ano, Pérsio Arida calculou uma taxa de juros de equilíbrio de 8% ao ano. Ou seja, cada vez que a taxa real de juros (acima da inflação!!!!) ficasse abaixo de 8%, dispararia reajustes de preços.
Na época, almocei com Pérsio e lhe disse que todos os formadores de preços que eu conhecia se baseavam em princípios tradicionais: há mercado? aumenta. Não há mercado? Reduz. Há competição? Reduz. Há cartelização? Aumenta. Há condições de aumentar os preços? Os preços aumentarão independentemente da tal taxa de juros de equilíbrio.
Mas como sintetizar essa soma complexa de fatores em um único indicador? Toca então a criar essas miragens, que são tão falsas quanto as notas das agências de risco, o Triple A para o Lehman Brothers.
Peça 5 – a burrice institucional brasileira
Concentrei as análises em temas econômicos, que acompanhei mais de perto. Mas essa burrice institucional, de cabeças de planilha e de cientistas de livros, é generalizada e pega todos os escalões da República. Surge no curto-prazismo do operador de mercado, ecoado pela mídia econômica, e no personagem público, autoridade ou editor, que quer surfar, viver intensamente seu momento fugaz de brilho, e o futuro que exploda – especialmente para a organização que ele representa.
Vamos a alguns exemplos de relações causa-efeito óbvias de uma geração de ignorantes, sem nenhuma noção sobre a relevância institucional de suas respectivas instituições e sem nenhuma capacidade analítica de perceber as consequências óbvias de seus atos.
Lava Jato e a antipolítica
Há uma ampla literatura mostrando que, quando se desmoraliza o poder político, abre-se espaço para outras formas de poder não eleitos – em geral, o poder militar. Foi o que ocorreu na Itália, Alemanha e Brasil dos anos 30; no Brasil e outros países latino-americanos nos anos 60 e 70.
No Brasil, mídia, Supremo e mercado ignoraram completamente essa lógica e abriram espaço para o poder militar pegar carona em um líder popular sociopata.
Mídia como partido político
Como dois e dois são quatro, era óbvio que, ao se transformar em partido político, a mídia entraria em uma armadilha fatal. Nenhum grupo político, de esquerda, direita, aceitaria passivamente a convivência com uma mídia que se propõe a sequestrar a política e a se colocar acima do poder político. Diretores de redação mandaram os princípios jornalísticos à merda e gozaram intensamente o poder que detiveram, comprometendo irreversivelmente a segurança futura do próprio exercício do jornalismo.
O Judiciário militante
A mesma ignorância institucional se manifestou no Judiciário. Há o choque do pré e do pós impeachment, cria-se o vácuo de lideranças e deslumbrados sem-noção ganham visibilidade, devido ao protagonismo de suas instituições naquele cenário específico. E passam a se julgar ungidos por Deus para ocupar o espaço vazio e se tornar condutores de povos. Aconteceu com Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Luis Roberto Barroso, trinca de ignorantes vaidosos de diversas extrações.
Depois, à medida que o organismo social e político vai se reconstituindo, são expelidos como vírus nocivos à volta do equilíbrio.
Os militares políticos
Esse mesmo deslumbramento com o vácuo político contaminou militares, como o ex-comandante do Exército, general Villas Boas.
Houve uma invasão do Estado por militares, e a grande derrota na batalha contra o Covid-19 recaiu sobre eles, o maior desgaste à imagem das Forças Armadas desde a redemocratização.
General Pazuello se tornou o paradigma do militar administrador. E os milhares de camaradas levados para o serviço público liquidaram definitivamente com o estereótipo de que as “boquinhas” do serviço público eram prerrogativa de civis.
Peça 6 – os danos à democracia
Essa soma de personagens públicos ignorantes, sem responsabilidade institucional, conseguiu o feito de colocar no comando do país o grupo mais despreparado da história da República, um sociopata que corteja a morte e a destruição.
Bolsonaro é filho direto da irresponsabilidade dos Barrosos, Moros e Dallagnols, dos diretores de redação, dos donos de grupos de mídia, de militares que perderam o pudor, de lideranças políticas que não tiveram paciência de retomar o poder pelo voto.
O legado não é apenas Bolsonaro e seus próximos 500 mil mortos. É a desorganização institucional completa do país e um legado, na opinião pública, que mostra a que foi reduzida a ex-7a economia do mundo, o país que encantava o globo no início da década.
Segundo pesquisa do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, denominada de “A Cara da Democracia”, 22,2% dos brasileiros acreditam que a terra é plana; 50,7% acreditam que o coronavírus foi criado pelo governo chinês; 56,4% acreditam que os hospitais são pagos para aumentar o número de pacientes mortos pela Covid-19.
Como conclui Leonardo Avritzer, organizador da pesquisa:
“Elas estão ligadas a uma diminuição da influência da mídia tradicional na formação da opinião pública: 62,6% dizem não confiar na Rede Globo e 41,7% dizem não confiar na Rede Record. Ainda mais surpreendente é que o número de pessoas que confiam na Record, 11,2% é quase o dobro daquelas que confiam na Globo”.
Desde 2005, era óbvio que o jornalismo de esgoto implementado conduziria a isso. Mas a ignorância institucional brasileira, e o oportunismo do curto prazo, falou mais alto.
Naquele início de autodestruição, quem ousasse discordar da mídia era massacrado por toneladas de ataques pessoais e de ações judiciais.
Hoje, todos pagam por essa irresponsabilidade. E enquanto Bolsonaro procede à mesma desavergonhada distribuição de recursos públicos, através do orçamento oculto, que o centrão domina o país, que o Ministro do Meio Ambiente sai em defesa de criminosos ambientais, Barroso morre abraçado à bandeira da Lava Jato, sustentando que hoje em dia a corrupção pelo menos é envergonhada.
O país não abdicou apenas da inteligência, mas do pudor.