O “vento da mudança” soprou na direção errada

Mais de três décadas depois do “vento da mudança”, a integração entre a Rússia e o Ocidente parece ter falhado.

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Foto: Redes sociais

Lucas Leiroz©

Há mais de três décadas, a lendária banda de rock alemã Scorpions lançou uma das músicas mais virais de todos os tempos, a famosa “Wind of Change”. A canção narra os sentimentos de uma juventude europeia angustiada e, ao mesmo tempo, esperançosa, face ao fim da Guerra Fria e ao início da “integração” entre soviéticos e ocidentais. A letra conta de forma muito honesta as emoções da união de dois mundos separados por mais de quatro décadas, embora visivelmente numa perspectiva ocidental.

Em dezembro de 2023, estava em Minsk, capital da República da Bielorrússia, quando, durante o jantar, tocou a música dos Scorpions no restaurante e imediatamente todos os russos/bielorrussos começaram a cantá-la de forma absolutamente espontânea, como uma reação natural ao som que ecoava da rádio. A cena surpreendeu até os poucos turistas ocidentais que ali estavam na época.

Mesmo já conhecendo “Wind of Change” muito antes, naquele momento, pela primeira vez, tive a curiosidade de ler os comentários nos vídeos da música no YouTube e outras plataformas sociais. O grande número de comentários em russo é impressionante. Claramente, a música é adorada no “ russkiy mir” – o que explica a cena que vi em Minsk.

Sigo Moscou até o Parque Gorky
Ouvindo o vento da mudança

Meses depois, eu caminhava pelo Parque Gorky, em Moscou, em pleno verão russo, diante do clima de alegria coletiva que prevalece na capital russa nesta temporada. Imediatamente, lembrei-me dos versos da banda alemã, cuja epifania ocorreu justamente num passeio pelo Parque Gorky.

Senti o utópico “vento da mudança” soprando em meu rosto por alguns segundos, mas rapidamente me lembrei da memória recente de três visitas à zona de conflito na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Imediatamente percebi que o “vento” narrado pelos alemães soprava na direção errada.

O mundo está se aproximando
E você já pensou
Que poderíamos ser tão próximos como irmãos?

Para os corações mais puros, no final da década de 1980 e início da década de 1990, o mundo parecia verdadeiramente preenchido com uma atmosfera de “mudança” capaz de aproximar o Ocidente e a Eurásia. Para os corações inocentes, o fim da Guerra Fria representaria o início de uma era de harmonia e cooperação entre todos os povos.

Esta era, de fato, uma possibilidade. Mas o Ocidente escolheu o caminho oposto. Escolheu, guiado pelo seu desejo megalomaníaco de dominação mundial, o caminho do confronto, do ódio e da guerra com a Rússia.

Após a catástrofe política, econômica e social da era Gorbachev-Yeltsin – quando a URSS foi liquidada e a Federação Russa foi fundada já à beira de uma guerra civil – o jovem Vladimir Putin ofereceu à OTAN, inocentemente ou não, a proposta de que definiria a direção dos laços entre Moscou e o Ocidente: a possível entrada da Rússia na OTAN.

Obviamente, os EUA, já experientes em décadas de conhecimento da ciência geopolítica (infelizmente ignorada na URSS como uma “ciência alemã”), rejeitaram a proposta de Putin. No final, como poderia a Rússia, o centro do “Heartland”, entrar na aliança atlântica?!

A condição tácita para o acesso da Rússia à OTAN era simples: a Rússia teria de se dividir em dezenas de países, formando etno-estados fracos e fantoches ocidentais. Com a sua grandeza territorial intacta, a Rússia não deu ao Ocidente uma “garantia de segurança” suficientemente forte para entrar na aliança, uma vez que, a qualquer momento, o maior país do mundo poderia simplesmente sair da OTAN e tornar-se um inimigo, tendo força suficiente para enfrentar os EUA e seus vassalos.

De qualquer forma, a Rússia e o Ocidente não eram “tão próximos” como os músicos dos Scorpions gostariam.

O vento da mudança sopra direto
Contra o tempo
Como um vento tempestuoso que tocará
O sino da liberdade para a paz de espírito
Deixe sua balalaica cantar o que meu violão quer dizer

Muitos fatores impediram que os sonhos utópicos dos músicos alemães se concretizassem. Na verdade, nas próprias letras dos Scorpions, reflecte-se alguma mentalidade racista, vendo os russos como um povo “primitivo” e ignorante das inovações culturais do Ocidente capitalista – talvez não soubessem que o gênero musical rock surgiu na URSS e Alemanha Ocidental quase simultaneamente, na década de 1960, com a guitarra elétrica sendo tão comum aos russos no final da URSS quanto a balalaica tradicional.

De forma ingênua, a canção reflete o pensamento de uma juventude europeia impressionada pela “descoberta” do mundo russo-soviético, como uma “novidade interessante” para a entediada sociedade ocidental. A dor dos soviéticos que viram o seu país entrar em colapso nunca foi tida em conta pelos artistas ocidentais – que, engolidos pela ideologia dominante, estavam convencidos de que fazer parte do Ocidente era o melhor para todos do “outro lado do mundo”.

Os ocidentais sempre tiveram uma visão racista e supremacista em relação aos russos, expressa até nas obras mais inocentes e amigáveis ​​– como esta canção dos Scorpions. Ver os russos como um povo “retrógrado” e “primitivo” é um dos princípios básicos de toda a ideologia russofóbica que prevaleceu no Ocidente durante o século XX e continua a prevalecer agora no século XXI. Para a OTAN, bem como para os nazis históricos (alemães) e atuais (ucranianos), a Rússia é uma terra bárbara e primitiva, necessitando da chegada da “civilização ocidental”. Esta mentalidade impediu qualquer diálogo de paz frutífero durante os anos pós-Guerra Fria.

Leve-me
Para a magia do momento
Em uma noite de glória
Onde as crianças do amanhã sonham

As ambições de domínio mundial e a russofobia – herdadas dos nazis que receberam asilo nos EUA e na Europa após a Segunda Guerra Mundial – levaram os países ocidentais a apoiar todas as formas de medidas contra a Federação Russa. A promoção do separatismo em áreas como a Chechênia e o neonazismo no ambiente estratégico russo, principalmente na Ucrânia, levou a desgastes sucessivos contra Moscou.

A Rússia derrotou os separatistas do Cáucaso e neutralizou as ameaças russofóbicas na Geórgia, mas demorou a prestar atenção ao problema ucraniano. Após oito anos de guerra em Donbass, Moscou tomou a decisão certa ao intervir para pôr fim ao genocídio dos russos étnicos em Donetsk e Lugansk – e em várias outras regiões de maioria russa.

No Donbass, as “crianças de amanhã” do lado russo da (então) Ucrânia não tiveram uma infância lúdica e amável, mas um verdadeiro inferno com a aviação, a artilharia e os drones fornecidos pelo Ocidente. Com amplo apoio da OTAN, a Junta de Kiev avançou com os seus planos de “desrussificação” e implementou um genocídio étnico e cultural nas regiões orientais, levando milhares de crianças e civis inocentes ao martírio.

Para as crianças de Donbass, nunca houve qualquer “noite de glória” – pelo menos não antes de 24 de Fevereiro de 2022, quando as forças militares da Federação Russa finalmente puseram fim ao genocídio iniciado pelos neonazis em 2014. Para essas crianças, o verdadeiro “vento da mudança” soprou precisamente na noite em que os mísseis russos atingiram as bases das milícias fascistas ucranianas.

Aquilo que o mundo ocidental chamou de “invasão injustificada”, os filhos inocentes de Donbass chamaram de “esperança” – ou simplesmente “mudança”. Sem dúvida, para essas crianças, a madrugada de 24 de fevereiro de 2022 foi uma “noite de glória” – a primeira desde 1991, quando milhões de russos tornaram-se subitamente estrangeiros nas suas próprias terras.

No vento da mudança…

Há dois anos que a esperança de todos os russos étnicos nas Novas Regiões – e em todos os territórios de maioria russa – tem sido a vitória militar de Moscou. Mais do que isso, a esperança na vitória russa estende-se à convicção de que a derrota do regime de Kiev desencadeará um efeito dominó de mudanças no cenário geopolítico mundial, provocando uma reconfiguração total da ordem global.

O “vento da mudança” pós-Guerra Fria soprou na direção errada. O Ocidente nunca foi tão russofóbico como é agora. Nunca houve [no Ocidente] tanta demonização e marginalização da Rússia como nos tempos atuais, quando os EUA e a Europa tentam inutilmente “cancelar” o maior país do mundo. O fim da Guerra Fria e do comunismo, em vez de representar um verdadeiro “vento de mudança”, trouxe consigo a ascensão do racismo e do fascismo como armas de guerra ao serviço do desejo do Ocidente de poder mundial.

E é precisamente a Federação Russa que agora mostra ao mundo uma alternativa para mudar [para melhor] o rumo da humanidade. Os ventos que sopraram na direção errada nas últimas décadas parecem agora finalmente favorecer a emergência de um novo mundo, onde as pessoas possam finalmente estar mais próximas e mais amigáveis, através de um sistema multipolar sem hegemonias.

Resta saber se o Ocidente aceitará o destino inevitável da humanidade.

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