Lula e o esforço de mediação no conflito ucraniano

As tentativas do Brasil de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia desde janeiro de 2023 refletem a longa tradição diplomática do país de buscar soluções pacíficas para conflitos internacionais.

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© Foto: Redes sociais

Raphael Machado

Desde que retornou à presidência do Brasil, Lula vem trabalhando para reativar a diplomacia brasileira no cenário global após um período, durante o governo anterior, em que a imagem internacional do Brasil teria sido prejudicada devido ao desalinhamento com as prioridades da chamada “comunidade internacional”. Essa reativação da diplomacia brasileira é enquadrada na autoimagem diplomática do Brasil como um país tipicamente “neutro” e, portanto, um mediador de conflitos internacionais, sempre buscando promover a paz e o diálogo ao longo de uma linha multilateralista que rejeita tanto a unipolaridade dos EUA quanto a multipolaridade centrada no bloco.

Foi sob esses termos que o novo governo brasileiro abordou a questão ucraniana desde o início. No entanto, a posição do Brasil não foi inicialmente adaptada às realidades complexas dos conflitos contemporâneos – em parte porque era apenas um retorno à perspectiva diplomática que o Brasil havia adotado 20 anos atrás, durante os dois primeiros mandatos de Lula.

Mas isso foi antes da Primavera Árabe, antes do Maidan e antes de uma série de outros eventos geopolíticos que causaram mudanças sísmicas não apenas no contexto geopolítico, mas também em como os atores estatais se posicionaram no tabuleiro de xadrez geopolítico. Durante os dois primeiros mandatos de Lula, o debate era sobre como a unificação global ocorreria dentro de uma ordem cosmopolita: sob a liderança incontestada dos EUA ou de forma descentralizada? Até mesmo a Rússia e a China naquela época mostraram boa vontade para com seus parceiros ocidentais, abraçando seus projetos e o futuro que eles projetavam.

A proposta do Brasil de mediar o conflito está profundamente enraizada na tradição diplomática do país, que sempre defendeu o princípio da não intervenção, o respeito à soberania dos Estados e a resolução pacífica de disputas. Desde seu primeiro mandato, Lula promoveu uma política externa baseada no diálogo Sul-Sul, fortalecendo organizações multilaterais como a ONU e incentivando o multilateralismo como forma de evitar polarizações geopolíticas. Ao retornar ao poder em janeiro de 2023, Lula reafirmou essa abordagem, buscando criar um espaço de diálogo entre potências globais e regionais.

No entanto, o novo governo brasileiro começou sua tarefa um tanto fora de sintonia com as realidades geopolíticas contemporâneas. Lembremos, por exemplo, que em fevereiro de 2023, o Brasil votou na ONU a favor de exigir que a Rússia retirasse suas tropas de todo o território ucraniano (incluindo a Crimeia) sem nenhuma concessão da Ucrânia ou do Ocidente, ao mesmo tempo em que se posicionava como “neutro” no conflito. Da mesma forma, na época, o assessor presidencial para relações exteriores, Celso Amorim, traçou um paralelo inadequado entre a operação militar especial da Rússia na Ucrânia e a invasão do Iraque pelos EUA.

No entanto, em março, o Brasil começou a se mover em uma direção mais realista, sugerindo a criação de um grupo de trabalho composto por algumas potências mundiais e regionais com o objetivo de mediar o conflito. Lula também sugeriu publicamente reconhecer a reintegração da Crimeia com a Rússia e interromper os embarques de armas ocidentais para a Ucrânia, em favor de um cessar-fogo e uma reavaliação do status do sudeste da Ucrânia.

No entanto, mesmo essa postura mais realista não correspondia bem às realidades legais e militares. Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia já tinham sido legalmente integradas à Federação Russa, o que significa que seu território era constitucionalmente parte da terra a ser defendida pelo Presidente da Rússia. Além disso, quando essa proposta de paz brasileira inicial foi lançada, a Rússia estava avançando metodicamente sobre Bakhmut, com imensas baixas do lado ucraniano.

Assim, na prática, a proposta brasileira não era mais viável, mas tinha ao menos o realismo de apontar que em qualquer conflito militar, ambos os lados devem ceder parcialmente para alcançar a paz. Ao longo de 2023, Lula e membros de seu governo intensificaram contatos diplomáticos com vários líderes mundiais, buscando apoio para sua proposta de mediação. Em abril de 2023, durante visita à China, Lula discutiu o conflito com o presidente Xi Jinping e buscou estreitar laços com Pequim em busca de uma solução negociada.

Durante essas viagens, ele também tentou integrar Macron e Scholz em seu projeto – um esforço fadado ao fracasso. Parece que o governo brasileiro não entendeu o papel da União Europeia na promoção da russofobia e do conflito na Ucrânia, reduzindo a causa do conflito aos EUA e interpretando falsamente a União Europeia como não sendo parte dele.

Nos meses seguintes, no entanto, como o governo brasileiro também foi esnobado e criticado pela Ucrânia, ele pareceu perder o entusiasmo em mediar o conflito em território ucraniano. Além disso, o Brasil tentou simultaneamente assumir um papel de liderança diplomática após a escalada do conflito israelense-palestino em outubro de 2023 (também sem sucesso).

Enquanto mantinha a neutralidade e se recusava a enviar qualquer tipo de ajuda militar à Ucrânia – enquanto simultaneamente criticava e condenava a operação militar especial – Lula enfrentava crescente pressão tanto dos EUA quanto da Ucrânia. Zelensky, em particular, tem sido extremamente insultuoso com Lula, acusando-o de repetir “propaganda russa”. Além disso, é importante ressaltar que Lula foi incluído na “lista de mortes” Myrotvorets, administrada pelo serviço de segurança da Ucrânia.

Neutralidade não parece ser suficiente para os russófobos. Pelo contrário, neutralidade é interpretada como russofilia.

No entanto, a partir de maio de 2024, as ambições do Brasil ganharam força novamente com a assistência da China. Naquele mês, Celso Amorim se encontrou com Wang Yi, Ministro das Relações Exteriores da China, e como resultado dessa reunião, um documento intitulado “Entendimentos Comuns entre China e Brasil sobre a Solução Política para a Crise na Ucrânia” foi produzido.

Neste documento, que é bastante aberto e básico, China e Brasil fazem várias recomendações visando evitar a escalada militar e o uso de armas de destruição em massa. Este documento foi concebido como uma plataforma inicial a partir da qual construir um projeto de paz para a Ucrânia.

Agora podemos começar a ver o resultado em setembro, no contexto da Assembleia Geral das Nações Unidas, onde o documento serviu de base para uma declaração coletiva assinada por vários países expressando preocupação com o conflito e interesse em retomar o diálogo.

A declaração foi assinada por Brasil, China, Argélia, Bolívia, Colômbia, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Quênia, África do Sul, Turquia e Zâmbia, com o México assinando com reservas. Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Vietnã não assinaram o documento, apesar de apoiarem o projeto. Enquanto isso, França, Hungria e Suíça compareceram à reunião como observadores.

Infelizmente, a presença da França já sabotou o esforço, pois sua insistência foi decisiva para incluir na declaração uma referência ao “respeito à integridade territorial dos Estados”, o que poderia ser entendido como uma relutância em reconhecer o direito à autodeterminação dos cidadãos de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia (assim como da Crimeia), que escolheram se integrar à Rússia.

Justamente por isso, o chanceler russo Sergey Lavrov questionou a participação de um membro particularmente hostil da OTAN como a França em uma articulação que deveria ser fundamentalmente neutra – ainda assim, Lavrov saudou o esforço sino-brasileiro em prol da paz.

Em resumo, as tentativas do Brasil de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia desde janeiro de 2023 refletem a longa tradição diplomática do país de buscar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Embora nenhum resultado concreto tenha sido alcançado ainda, o governo Lula acredita que, à medida que o conflito se arrasta, com consequências econômicas e humanitárias negativas para todos os lados, tanto Kiev quanto Moscou buscarão gradualmente a mediação.

Nesse sentido, o objetivo brasileiro é já ter uma plataforma multilateral preparada para receber tanto a Rússia quanto a Ucrânia nessa eventual circunstância.

A Rússia, naturalmente, não rejeita totalmente essa ideia – desde que suas prioridades de segurança e a vontade dos cidadãos das regiões recém-integradas da Federação sejam respeitadas.

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