Liberalismo teológico: A ideologia estatal dos Estados Unidos

O liberalismo teológico teve tanto influência de cima para baixo, ao conquistar Harvard, quanto influência de base, ao atingir as igrejas.

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© Foto: Domínio público

Bruna Frascolla

A Fundação Rockefeller, a Planned Parenthood e a Fundação Ford têm em comum o fato de serem organizações 501(c)3. É muito difícil encontrar uma história política das 501(c)3s*. A pessoa que escreveu uma, talvez a única, foi o jurista Phillip Hamburger. Seu título é Liberal Suppression: Section 501(c)3 and the Taxation of Speech (The University of Chicago Press, 2018). Cada citação longa neste artigo vem de seu livro. Ele tem uma história política, e não apenas legal, porque se esforça para mostrar que as restrições às atividades políticas de organizações filantrópicas, que eram geralmente organizações religiosas, tinham um certo contexto sociocultural, a saber: o ímpeto de conter o catolicismo, entendido como uma religião antidemocrática e antiamericana. Esse ímpeto vem do liberalismo teológico.

Essa ideologia foi defendida com maior ardor e sucesso pela Igreja Unitária. Seu nome vem da negação da trindade e da afirmação do caráter unitário de Deus. Rebaixado, Jesus perde seu status divino e se torna uma espécie de hippie que dá lições morais não autoritárias. O liberalismo teológico leva a sério e a fogo a sola scriptura de Lutero: o crente deve usar seu próprio intelecto, sozinho, para examinar livremente a Bíblia, sem interferência “externa”; isto é, sem procurar a direção de um pastor ou padre.

Embora o liberalismo teológico tenha lutado contra tendências protestantes rivais, o arquétipo da opressão era a Igreja Católica. E, como a imigração trouxe primeiro muitos irlandeses para os Estados Unidos, o liberalismo nativista surgiu entre a maioria protestante, que raciocinou da seguinte forma:

Ao contrário de uma “igreja democrática”, Evans explicou, uma “igreja autocrática direciona as opiniões e consciências de seus membros em todos os assuntos que acredita envolver moral e religião”. Como resultado, “na política de uma democracia, as consciências dos católicos não são suas; sua igreja não permite que sejam politicamente livres”. Tal igreja era uma ameaça à democracia, pois interferia na “função democrática essencial da livre expressão da vontade do povo”. Como tantas vezes no pensamento liberal, a fala em grupo ameaçava a livre expressão do povo, e este foi o prefácio para exigir restrições à livre expressão da Igreja. Em resposta à ameaça, Evans pensou que “[qualquer] igreja que viole o princípio da tolerância deve, portanto, perder seu próprio direito à tolerância”. Claro, os liberais “acreditam no livre pensamento e na liberdade de expressão” e “liberais superficiais” eram, portanto, frequentemente inclinados a “tolerar a propaganda católica com base nesses argumentos”. Foi um erro, no entanto, “recusar-se a ver que [a propaganda] é fundada na negação da liberdade de pensamento e expressão aos próprios católicos, e visa a uma negação desses direitos a todos os homens”. Em vez de argumentar grosseiramente que a Igreja Católica deveria ter seus direitos de expressão negados, Evans concluiu mais sutilmente que precisava haver um esclarecimento ou definição dos direitos das igrejas.

Este Evans é Hiram Wesley Evans, mago imperial da Ku Klux Klan, uma organização liberal nativista, que, como se vê, vem de um background teológico. O argumento aparece em seu livro de 1930, The Rising Storm.

Bem, dessa necessidade de definir os direitos das igrejas surgiram as restrições à liberdade de expressão de organizações filantrópicas. Como os EUA têm a liberdade religiosa em sua fundação, o catolicismo nunca é mencionado na legislação. Na verdade, justamente por causa da combinação de fortes tensões étnico-religiosas e legalismo liberal, a maioria protestante calvinista de origem inglesa pôde criar dispositivos legais para irritar colateralmente minorias indesejadas. Um exemplo disso é a Lei Seca, que tornou a vida muito difícil para católicos e luteranos que precisavam de vinho para celebrar a missa… e não eram propensos a serem abstêmios. No liberalismo, a maneira legal de incomodar minorias com a mão do Estado é usando a Ciência. Os calvinistas só precisam reunir um bando de cientistas para provar que o álcool é ruim e proibi-lo, atingindo assim o objetivo de irritar os irlandeses, os italianos e, durante a Primeira Guerra Mundial, os alemães. Aqueles que subsidiam a Ciência governam o estado liberal.

Mas voltemos aos impactos do liberalismo teológico. Claro que Philip Hamburger não diz que a KKK governou os EUA; então ele pega um argumento semelhante de uma figura muito moderada, também publicada em 1930: um certo Frederik Keppel, que presidiu a Carnegie Corporation e alertou contra os perigos da “propaganda” das igrejas. Se duas pessoas muito diferentes escreveram a mesma coisa, foi porque o pensamento marcou um certo senso comum da época. O lado bom de usar a KKK, no entanto, é que eles eram muito explícitos, e seus lemas ainda são muito normais. Um exemplo é o que foi escrito contra as escolas católicas:

dizia-se que, enquanto as escolas católicas disseminavam propaganda ou verdades predeterminadas, as escolas públicas ensinavam as crianças a pensar por si mesmas. Essas ideias apareceram em panfletos nativistas desde meados do século XIX e floresceram no século XX. Allen Autrey explicou em 1911 que “para ser um bom católico romano, você deve desistir… até mesmo do privilégio de PENSAR por si mesmo”, e para evitar isso, as crianças tinham que ser enviadas a professores “treinados em escolas de pensamento independente”. Esses professores, é claro, eram os de escolas públicas, e em todo o espectro liberal durante o início do século XX, comentaristas teologicamente liberais, de John Dewey a membros da Klan, insistiam que as escolas públicas eram o lugar onde (conforme colocado por um panfleto da Klan) as crianças aprendiam “como pensar, não o que pensar”. Dessa perspectiva, a educação não deixava espaço para propaganda e, com base nessa distinção teologicamente liberal, o Bureau of Internal Revenue em 1919 interpretou “propósitos educacionais” como excluindo propaganda.

Assim, 1919 foi o primeiro ano em que restrições à liberdade de expressão apareceram na lei tributária relativa a instituições filantrópicas. A partir daí, vemos que um sujeito como Paulo Freire, que foi financiado pelo governo dos EUA, apenas dá um disfarce marxista a uma variedade teológica do protestantismo que era nova no século XIX.

E como a ascendência do liberalismo teológico pode ser explicada? Por meio da ascensão dos unitaristas a posições de poder, bem como da disseminação de seu liberalismo por outras correntes religiosas. O ano-chave foi 1805, apenas 29 anos após a independência:

Um marco notável no progresso da teologia liberal foi a eleição de unitaristas para posições de liderança em Harvard a partir de 1805. Outro foi o triunfo dos unitaristas durante as décadas seguintes ao assumir o controle das igrejas congregacionais em Massachusetts. Esses, no entanto, foram apenas os sucessos mais visíveis. Embora inicialmente associado ao unitarismo, universalismo e deísmo, o liberalismo teológico estava se tornando uma atitude cada vez mais popular em quase todas as denominações protestantes, sem mencionar o judaísmo. Como resultado, quase todas as afiliações protestantes nos Estados Unidos — até mesmo os presbiterianos — estavam divididas sobre a teologia liberal, e essa divisão dentro das denominações era frequentemente mais significativa do que os limites entre as denominações. Certamente, as divisões interdenominacionais ainda predominavam na superfície da religião americana, mas não muito abaixo, havia um crescente ataque liberal à “ortodoxia” — um ataque que estava transformando a religião americana.

O liberalismo teológico, portanto, teve influência de cima para baixo, ao conquistar Harvard, bem como influência de base, ao realmente atingir as igrejas. Isso explica como foi possível ganhar tanta penetração social e institucional. Não menos importante, uma coisa não mencionada ali é que John D. Rockefeller Jr. era um adepto da teologia liberal que patrocinou sua proliferação.

E o judaísmo liberal? Quem quiser ver como é pode consultar o site www.liberaljudaism.org . Eles prometem conversão em 18 meses e não exigem circuncisão! Circuncidar-se, de acordo com o site, “é sua escolha pessoal. As razões para não ser circuncidado incluem […] uma razão intelectual contra o procedimento.”

No entanto, o principal trunfo do liberalismo teológico é que ele não se vê como religioso. Os unitaristas nem se viam como uma religião!

Mesmo quando organizados em grupos religiosos, como os unitaristas, os liberais teológicos pensavam que formavam suas crenças como indivíduos, e não como membros de seus grupos. O reverendo Aaron Bancroft [1755 – 1839], presidente da Unitarian Association e pai do historiador, argumentou que os unitaristas não eram realmente uma seita, mas sim apenas uma coleção de indivíduos de mente independente. Sua “fé era a conclusão separada e o resultado da ação de mentes independentes, cada uma pensando, indagando e decidindo por si mesma, e adotando aquela crença, pela qual estava disposta a ser responsável por si mesma”.

Agora, como a constituição dos EUA é liberal e não admite privilegiar uma única religião, nem misturá-la com o Estado, uma religião que não se vê como religião é capaz de se tornar uma religião de Estado. Ela só precisa ter seguidores em posições estratégicas. Eles considerarão que é tão legítimo apoiar a ciência em um Estado laico quanto apoiar sua moral religiosa.

Evidentemente, os unitaristas eram uma religião e tinham uma ortodoxia explícita: todo crente deve chegar às mesmas conclusões sozinho, sem direção de autoridade. É uma religião que só funciona com autoestima muito alta, já que o resto da humanidade não pertence a ela somente porque não ousou pensar por si mesmo. O mundo é dividido entre os bem-pensantes e os escravos mentais, cujo arquétipo é o católico. Esta também é uma maneira profundamente moralista de olhar o mundo: aqueles que não pensam como eu estão perdidos; aqueles que pensam como eu são salvos e nós vamos para o céu.

Qual é o obstáculo entre o céu e o inferno? Em princípio, a educação. Os católicos nasceram na servidão e são escravos do Papa; mas se os libertarmos, eles poderão usar seu intelecto e chegar às mesmas conclusões que eu e meus associados. No entanto, os grilhões foram presos durante a educação inicial; então, há uma necessidade de uma educação não opressiva que permita aos alunos pensar por si mesmos e chegar à mesma conclusão que eu. Ninguém é livre e bom, exceto se pensa o mesmo que eu. E aí vemos a raiz do neoconservadorismo, que quer lançar algumas bombas para libertar algumas pessoas, forçando-as a se tornarem democráticas só porque sim.

Basicamente, é uma fé sobrenatural pura: não havia nenhuma razão concreta para que alguém acreditasse que todos os povos do mundo iriam querer viver em democracias liberais, de modo que o mundo havia chegado ao Fim da História com o colapso da União Soviética. Não era nada mais do que uma variante um pouco menos agressiva e particularista do sonho da Ku Klux Klan.

*501(c)(3) é um item da legislação tributária dos Estados Unidos que trata de organizações sem fins lucrativos que têm direitos à isenção de impostos.

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