Grande parte dos norte-americanos sobrevive hoje em subempregos

A história de Kristof recua para a década de 70 do século passado e registra a algazarra que reinava diariamente no ônibus escolar nº 6. Nick viajava todos os dias na companhia de seus vizinhos da família Knapp, Farlan, Zealan, Rogena, Nathan e Keylan. Filhos da classe trabalhadora, os meninos e meninas sonhavam “em meio a travessuras, bravatas e otimismo”.

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Um número cada vez maior de norte-americanos tem enfrentado a pobreza e apelado aos trabalhos menos compensadores, para conseguir sobreviver em uma sociedade capitalista

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

Dias antes do feérico pronunciamento de Donald Trump em Davos, o jornal The New York Times publicou um texto comovente do articulista Nicholas Kristof. Da boca e garganta de Trump ribombaram celebrações do desempenho da economia dos Estado Unidos. Da pena de Kristof ecoam lamentos e lamúrias dos habitantes de Yamhill, uma pequena cidade do Oregon.

A história de Kristof recua para a década de 70 do século passado e registra a algazarra que reinava diariamente no ônibus escolar nº 6. Nick viajava todos os dias na companhia de seus vizinhos da família Knapp, Farlan, Zealan, Rogena, Nathan e Keylan. Filhos da classe trabalhadora, os meninos e meninas sonhavam “em meio a travessuras, bravatas e otimismo”.

O pai dos meninos tinha um emprego firme e bem remunerado como instalador de dutos. A família explodiu em felicidade quando adquiriu a casa própria e a alegria foi intensa no dia em que Farlan ganhou um Ford Mustang ao completar 16 anos.

Penitenciária

“Hoje, cerca de um quarto das crianças do ônibus nº 6 estão mortas, vitimadas por drogas, suicídio, álcool ou acidentes causados por imprudência. Dos cinco filhos da família Knapp, Farlan morreu de insuficiência hepática por bebida e drogas, Zealan queimado até a morte em um incêndio em casa, desmaiado e bêbado, Rogena morreu de hepatite ligada ao uso de drogas e Nathan explodiu-se ao cozinhar metanfetamina. Keylan sobreviveu porque passou 13 anos em uma penitenciária estadual.”

As outras crianças no ônibus não tiveram destino melhor. “Mike suicidou-se, Steve morreu em um acidente de moto, Cindy de depressão que culminou em um ataque cardíaco, Jeff de um acidente de carro, Billy de diabetes na prisão, Kevin de doenças relacionadas à obesidade, Tim de um acidente em trabalhos de construção, Sue de causas indeterminadas. Chris é dado como morto, depois de anos de alcoolismo e sem-teto. Ao menos mais um está na prisão, e outro é sem-teto.”

A pequena Yamhill não é uma exceção na vida contemporânea dos Estados Unidos. As assim chamadas “mortes por desespero” assumiram dimensões assustadoras. Os suicídios apresentam a taxa mais elevada desde a Segunda Guerra. As defunções por abuso de drogas, sobretudo opioides, atingiram índices alarmantes.

Bilionários

“O significado da vida para a classe trabalhadora parece ter evaporado”, disse Angus Deaton, economista engalanado com o Prêmio Nobel e autor da expressão Morte por Desespero. Nos rastros da alegria barulhenta e esperançosa do ônibus nº 6 restaram as mortes por álcool, drogas e suicídio.

Kristof atribui a avalanche de desgraças individuais à desintegração da classe trabalhadora norte-americana. “Empregos perdidos, famílias quebradas, melancolia – e políticas fracassadas. O sofrimento dos menos favorecidos era invisível para os ricos, mas agora os bilionários aparentam preocupação com os rumos dos Estados Unidos.”

A Faculdade de Direito da Universidade Cornell publicou recentemente um estudo a respeito das mutações no mercado de trabalho local. O propósito da investigação é construir um índice de qualidade dos empregos oferecidos pelo setor privado desde a Segunda Guerra (The U.S. Private Sector Job Quality Index).

Contingente

O Job Quality Index destina-se a avaliar – em uma base mensal – em que medida os empregos criados nos Estados Unidos correspondem às expectativas dos trabalhadores. O critério adotado compara as vagas que oferecem uma relação salários/horas trabalhadas inferior à desejada com as ocupações que ensejam uma relação satisfatória, ou seja, maior salário, mais horas trabalhadas. Não é difícil descobrir a predominância dos empregos de poucas horas e baixos salários.

Relatório publicado em novembro de 2019 pela Brookings Institution constata que 44% dos trabalhadores americanos com idades entre 18 e 64 anos (em um total de 53 milhões) labutam em empregos de baixa remuneração, com uma renda média anual de apenas US$ 17.950. Se elevarmos o sarrafo para além dos 64 anos, esses 53 milhões vão sofrer a companhia dos trabalhadores mais velhos, cujo contingente cresce rapidamente.

Os mais idosos voltam ao trabalho por não conseguirem custear as despesas de alimentação, moradia, transporte e saúde quando se aposentam (colapso da poupança pessoal, pensões mínimas e aumento da idade de aposentadoria). Deve-se, portanto, adicionar ao menos outros 5 milhões obrigados a voltar ao mercado de trabalho. Esse contingente de 58 milhões que trabalham em tempo parcial, em contratos de muito curto prazo ou temporários e que ganham US$ 8 por hora, provavelmente compõe a maioria dos norte-americanos que não receberam aumentos salariais no ano passado.

Assim como no caso de seus antecessores, o ciclo de expansão comemorado por Trump fracassa miseravelmente no atendimento das promessas mais caras ao american dream: crescimento da renda e geração de empregos estáveis e bem remunerados.

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista brasileiro.

Fonte: Carta Capital

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