BRASÍLIA, DF, SÃO PAULO, SP, E RECIFE, PE – Uma declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre o pai do advogado Felipe Santa Cruz, chefe nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), causou repúdio entre opositores e até entre aliados.
O advogado é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, após ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar (1964-1985), no Rio de Janeiro.
Ao reclamar sobre a atuação da Ordem na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo em setembro de 2018, Bolsonaro disse que poderia explicar a Santa Cruz como o pai dele desapareceu durante o regime.
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele”, disse Bolsonaro na manhã desta segunda-feira (29).
“Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, acrescentou o presidente.
Horas depois, em uma transmissão ao vivo pela internet enquanto cortava o cabelo no Palácio do Planalto, o presidente defendeu os militares e culpou grupos de esquerda pelo desaparecimento.
“Não foram os militares que mataram, não. Muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece”, afirmou Bolsonaro. “Até porque ninguém duvida, todo mundo tem certeza, que havia justiçamento. As pessoas da própria esquerda, quando desconfiavam de alguém, simplesmente executavam.”
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, responsável por investigar casos de mortos e desaparecidos na ditadura, não há registro de que Fernando Santa Cruz tenha participado da luta armada.
Em nota, o presidente da OAB afirmou que Bolsonaro age com “crueldade e falta de empatia” e que ele debocha do assassinato de seu pai.
“O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia”, disse Santa Cruz.
“Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro –e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, afirmou.
Ao retomar o assunto na transmissão ao vivo, Bolsonaro disse que não pretendia “mexer com os sentimentos” de Santa Cruz. “Acho que ele está equivocado em acreditar em uma versão apenas do fato, mas ele tem todo o direito de me criticar”, afirmou o presidente.
Sem direito de defesa, os justiçamentos em organizações de esquerda eram precedidos por “tribunais revolucionários”. É comum, no entanto, que militares reformados e da reserva usem essas mortes para tentar justificar sua própria violência, pondo na conta da esquerda assassinatos cometidos pelas forças da repressão.
A declaração repercutiu mal mesmo entre políticos próximos a Bolsonaro, como o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), que já se coloca como postulante ao Planalto em 2022 em eleição que o presidente também indicou que pretende disputar.
“É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz”, afirmou Dória, após ser questionado sobre o tema em evento no Palácio dos Bandeirantes nesta segunda.
“Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em dez anos de exílio pela ditadura militar”, disse o governador tucano.
O PSDB também se manifestou contra a fala de Bolsonaro.
“Uma declaração desrespeitosa, abusiva e lamentável. Um líder pode até fazer história, mas não tem o poder de reescrevê-la”, afirmou o partido em sua conta no Twitter.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), disse que “o terrível assassinato do pai de uma pessoa não deve servir de arma para politicagem”.
“Essa é a criminosa declaração de Jair Bolsonaro contra a OAB e, especialmente, o seu presidente Felipe Santa Cruz, que teve a memória do pai covardemente atacada por esse facínora que usa, de forma indigna, a faixa presidencial. Não ficará impune”, afirmou o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE).
Ao prestar solidariedade a Santa Cruz “diante dos insultos de Bolsonaro à memória de seu pai, vítima da ditadura”, o ex-presidente do Senado Renan Calheiros (MDB-AL) disse que o presidente da República “cada vez mais perde a noção do respeito, é inacreditável”.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) vai pedir explicações a Bolsonaro sobre a declaração.
Segundo depoimentos do ex-analista do DOI-Codi, Marival Chaves, Fernando Santa Cruz foi assassinado, junto com outros ex-integrantes da organização de esquerda Ação Popular, numa operação executada por conhecidos militares da repressão, como o então coronel do Exército Paulo Malhães (1937-2014), que assumiu ter conhecimento de diversos atos de tortura e assassinato de opositores políticos.
“É muito grave essa declaração”, disse a presidente da comissão, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga. “Ele [Bolsonaro] está transformando um dever oficial, que é dar informações aos familiares, que ele já deveria ter cumprido, em uso político contra um crítico do seu governo.”
“É lamentável a declaração sob qualquer aspecto. Ele dizer que sabe e usar isso, é uma forma de reiterar a tortura dos familiares. E o mais grave, ele usa um golpe tão baixo contra uma pessoa que ele ataca politicamente”, afirmou Gonzaga.
Familiares de Fernando Santa Cruz vão à PGR (Procuradoria-Geral da República) pretendem representar contra Bolsonaro pela declaração. Irmão do desaparecido, Marcelo Santa Cruz afirmou que o presidente tem obrigação de dizer tudo o que sabe sobre o caso e apontar, inclusive, onde estão as ossadas.
“É uma resposta que buscamos há 45 anos. Minha mãe passou a vida procurando o filho e terminou morrendo neste ano sem saber o que ocorreu. É mais um sofrimento que o presidente impõe à família”, diz.