Donald Trump, Kamala Harris e a guerra nuclear

Que os povos do mundo lidem com o inimigo secundário, encarnado no imperialismo de Trump e dos “realistas” da sua ala de neoconservadores pragmáticos.

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© Foto: Domínio público

Rafael Machado

Alguns geopolitólogos russos receberam a vitória de Donald Trump como uma excelente notícia e, potencialmente, como indicação de uma virada de direção no cenário mundial que poderia gerar resultados positivos para a Rússia e para o projeto multipolar. É o caso, por exemplo, do professor Alexander Dugin, que interpretou a vitória de Trump positivamente e, até mesmo, como possuindo um significado “revolucionário”.

A leitura de Dugin foi bastante criticada, porém, por críticos honestos que levantam uma série de objeções. Esses críticos, sendo muito comuns no mundo árabe-islâmico e no mundo ibero-americano, apontam para o sionismo exacerbado de Trump, cujo genro Jared Kushner é coautor de um projeto de restrição do Oriente Médio em benefício da unipolaridade. Eles apontam, também, para a autorização dada para o assassinato do General Qassem Soleimani, figura de relevância da Guarda Revolucionária do Irã que comandou as forças pró-Assad na destruição do ISIS. Recorda-se, ainda, uma tentativa de assassinato contra Nicolás Maduro, bem como as tentativas de invasão e de revolução colorida na Venezuela.

Agora, em um tema mais próximo da realidade eurasiática, longe dessa fantasia propagandística espalhada pelo Partido Democrata no qual Trump e Putin seriam “amigos” e “comparsas”, a realidade é que o período de Trump na Casa Branca também contribuiu para a irrupção do conflito ucraniano. Não se deve esquecer que Trump concedeu a entrega de várias remessas de Javelins para o país governado por Zelensky.

Ainda assim, a decisão de Biden de autorizar o uso de armas de longo alcance da OTAN contra o interior do território russo – seguida por permissões análogas dadas pelo Reino Unido e pela França – justifica a posição daqueles que, como Dugin, disseram que Trump era geopoliticamente “menos catastrófico” que Kamala Harris.

É que essa posição se apoiava precisamente na previsão de que a atual elite do Partido Democrata, e os setores majoritários do Deep State ligados a essa elite, estavam dispostos a arriscar uma escalada nuclear sem se importar com a possibilidade de uma guerra aberta com repercussões nucleares . De fato, nunca estivemos tão perto de uma catástrofe do tipo quanto hoje. Nem mesmo a Crise dos Mísseis de Cuba representou uma tensão simultaneamente tão alta e tão contínua.

E isso deve ser levado em consideração à luz das declarações de Putin e de outras autoridades russas, como Sergey Ryabkov, de que essa autorização de uso de armas de longo alcance por Kiev seria respondida com uma escalada que poderia portar uma dimensão, começando pela retomada de testes de armas nucleares.

Na verdade, vimos recentemente uma revisão da doutrina nuclear russa. A nova doutrina nuclear russa, cuja revisão já foi discutida mesmo antes do uso concreto de ATACMS, concebe que mesmo o uso de determinadas armas convencionais contra alvos dentro do território russo poderia ser o suficiente para legitimar uma resposta nuclear. Mas temos a impressão dessa revisão só foi levada a sério a partir do teste do míssil balístico hipersônico de alcance intermediário Oreshnik.

O Oreshnik, que não pode ser categorizado como uma arma nuclear em si (apesar de poder portar uma ogiva), foi uma resposta dura, mas refinada, ao uso dos ATACMS. Não sendo nuclear, não pode ser considerada, na verdade, uma provocação adequada à direção diretamente a uma escalada nuclear. Mas trata-se de um míssil suficientemente poderoso, cuja tecnologia se baseia na instrumentalização de energia cinética, e completamente indefensável por causa de sua velocidade e sua potência.

Seu uso como teste por parte das Forças Armadas da Rússia contra uma empresa da indústria bélica ucraniana na cidade de Dnepropetrovsk parece ter sido suficiente para dissuadir a Ucrânia de novos ataques com mísseis de longo alcance. Por enquanto.

Mas por que Biden, Blinken e Harris (e, por trás deles, os Clinton, os Obama, e as elites do Deep State) estão apostando num holocausto nuclear abertamente às vésperas do fim do seu mandato? De que forma isso poderia beneficiá-los?

Em primeiro lugar, é necessário retornar ao fato de que apesar de Trump não ser o “pacifista” ou o “isolacionista” que alguns de seus apoiadores acreditam que ele é, é um fato que uma parte específica dos setores mais ideológicos do Deep State está preocupado com a possibilidade de que ele atrapalhe os seus planos para a Ucrânia, talvez diminuindo o apoio ou aumentando os condicionamentos em cima do apoio. Por isso, tente desesperadamente aproveitar os momentos finais do governo Biden para tentar criar uma situação irreversível para o mandatário seguinte.

Agora, porque essas figuras não temem o espectro da guerra nuclear? Afinal, muitas previsões apontam até mesmo para o risco de um inverno nuclear. Essas elites são tão “humanas” quanto o resto de nós.

Em parte, trata-se de arrogância. Especialistas e burocratas como David Petraeus realmente acreditam na possibilidade dos EUA triunfarem em uma guerra contra a Rússia, caso Washington consiga atacar primeiro. Obviamente trata-se do tipo de arrogância que pode levar a humanidade ao abismo.

E em parte, trata-se de preparação. Uma das notícias mais peculiares dos últimos anos é a da obsessiva construção de bunkers por parte de bilionários estadunidenses, incluindo personagens notoriamente ligados ao Deep State como Mark Zuckerberg e Jeff Bezos.

Em outras palavras, o campo político-econômico-militar que esteve com Biden e apoiou Harris está repleto de personalidades que: 1) Acreditam que os EUA podem vencer uma guerra contra a Rússia; 2) Acreditamos poder sobreviver a uma troca de mísseis nucleares, mesmo que a maior parte da população morra.

Agora, se abandonarmos esses delírios elitistas, diante da possibilidade de guerra total nuclear até mesmo o sionismo trumpista aparece como “mal menor”, ​​e é isso que muitos simplesmente não conseguem aceitar ou computar. Não estamos aqui querendo ser idealistas em relação a Trump, e mesmo neste tópico precisamos registrar que também foi Trump que retirou os EUA do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, mas pelo um acordo de paz na Ucrânia com concessões para a Rússia fazem parte do discurso de Trump e alguns de seus assessores; enquanto isso, do outro lado, permanece um fato de que Biden tomou deliberadamente uma decisão que poderia ter iniciado já uma guerra nuclear.

O resto, naturalmente, permanecerá sendo verdade que a ideia de “América Primeiro” permanece um fundo de imperialismo unipolarista, mas para que seja possível avançar com qualquer projeto soberanista e, inclusive, desafiar a hegemonia dos EUA, é necessário no mínimo evitar o risco nuclear. Se com Biden/Harris a chance de um apocalipse nuclear é maior, como foi indicado recentemente, então claramente teríamos com eles um problema maior.

Depois, que os povos do mundo lidem com o inimigo secundário, encarnado no imperialismo de Trump e dos “realistas” da sua ala de neoconservadores pragmáticos.

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