Um corruptor para chamar de seu
Rafael Neves/The Intercept Brasil
O bilionário investigado em três continentes para quem Moro está trabalhando.
Em plena pandemia de covid-19, o ex-juiz e ex-ministro de Bolsonaro, Sergio Moro está ganhando muito bem. Agora advogado, ele trabalha para a defesa de um empresário investigado por suspeitas de corromper governantes, lavar dinheiro, sonegar impostos e violar direitos humanos e leis ambientais – e que já foi preso a mando das autoridades da Suíça e de Israel.
Pelo parecer jurídico que está produzindo para a defesa desse empresário, o ex-comandante da Lava Jato irá embolsar centenas de milhares de reais.
O serviço é uma requisição do israelense Benjamin “Beny” Steinmetz, bilionário (em dólares) da mineração, já investigado pelo FBI e alvo da justiça na Suíça, nos Estados Unidos e em Serra Leoa, na África. Por ordem de Steinmetz, um escritório de advocacia brasileiro pediu o parecer jurídico ao ex-ministro bolsonarista.
Um parecer jurídico é um diagnóstico sobre uma questão legal ou do direito, das provas existentes num caso e das leis sob as quais ele será avaliado. O de Moro servirá para orientar a defesa numa disputa igualmente bilionária que o empresário trava em Londres contra a mineradora brasileira Vale.
O contrato que inclui a encomenda de Steinmetz vai render R$ 750 mil a Moro. Ele inclui outros dois pareceres, cujos clientes ainda são mantidos sob sigilo – nós estamos trabalhando para descobrir quem são.
Um escritório chamado Warde Advogados contratou o ex-juiz. Em nota, o escritório informa que procurou Moro “a pedido do empresário israelense Benjamin Steinmetz” em busca de “parecer do ex-ministro Sergio Moro em um litígio transnacional.” Walfrido Warde, um dos comandantes do escritório, é crítico ferrenho da Lava Jato e escreveu livro fulminando a operação.
Moro poderá ajudar a defesa de Steinmetz a tentar virar uma disputa que começou em 2010, quando a Vale comprou do BSGR, o grupo empresarial do israelense, 51% de uma concessão para explorar minério de ferro na Guiné, no extremo oeste da África. O negócio fracassou, e a sociedade se desfez em 2014.
Apesar de rica em reservas minerais, a Guiné é um dos países mais pobres do mundo: 55% de seus 13 milhões de habitantes vivem abaixo da linha da pobreza. A nação ocupa a 174ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU em 189 nações, e foi um dos epicentros dos surtos do vírus ebola.
Num país assim, é difícil que a lei consiga frear grandes interesses econômicos – e, quando isso acontece, sempre se pode recorrer à propina. É essa a suspeita que pesa sobre Steinmetz. Uma investigação conduzida pelas autoridades da Suíça e encerrada no ano passado concluiu que ele ganhou concessão das minas na região depois de pagar propina a uma das quatro viúvas de Lansana Conté, ditador que comandou o país por 24 anos.
Steinmetz sempre negou todas as acusações. Mas as provas são fartas: os investigadores reuniram áudios, cheques e até um contrato provando as relações entre a ex-primeira dama e um funcionário do israelense, já que ele mesmo nunca assinava os documentos. O bilionário era alvo da polícia suíça desde 2013 e chegou a ficar preso por duas semanas em 2016.
Não acaba aqui. A ficha corrida de Steinmetz é longa – e os crimes de que é acusado sempre têm lugar em nações pobres e desiguais.
Na África do Sul, o israelense é suspeito de integrar um esquema de sonegação de impostos na exploração de diamantes em parceria com a britânica De Beers, empresa centenária do setor.
Em Serra Leoa, vizinha da Guiné, a atuação de Steinmetz está na mira de organizações de defesa dos direitos humanos há mais de quinze anos. Segundo a Transparência Internacional (aliada e defensora intransigente da operação Lava Jato), famílias foram desalojadas de áreas de mineração e jamais receberam as contrapartidas prometidas. Em 2012, uma greve de trabalhadores de uma mina terminou com dois mortos pela polícia.
Em agosto, a justiça de Serra Leoa bloqueou os bens da Octea, subsidiária do grupo de Steinmetz, por causa de violações à lei ambiental do país. O processo aponta que a empresa deixou um rastro de contaminação da água, problemas respiratórios em vizinhos de minas e danos a casas causados por explosões.
Ainda em Serra Leoa, a Octea usou uma empresa offshore num paraíso fiscal para deixar de pagar quase 700 mil dólares em impostos à cidade de Koidu, onde extrai diamantes. Empresas offshore não são necessariamente ilegais, mas costumam ser usadas para evasão de divisas e ocultação de patrimônio. A Lava Jato achou várias delas em nome de gente que mandou para a cadeia.
A justiça do país isentou a empresa do pagamento alegando que as minas não estão em nome da Octea, e sim de uma subsidiária registrada nas Ilhas Virgens Britânicas. Segundo o consórcio de jornalismo investigativo que revelou o caso dos Panama Papers, foram descobertas nada menos que 131 empresas offshore ligadas a Steinmetz.
Um ex-diretor do FBI e alguns espiões
Anos antes de recorrer a Sergio Moro, Beny Steinmetz já havia requisitado os serviços de outro ex-agente da lei de biografia questionável.
Em 2015, reportagem do Intercept nos EUA revelou que o israelense havia contratado Louis Freeh, um ex-diretor do FBI suspeito de receber um apartamento da Flórida como propina para livrar de investigações um empresário iraniano radicado nos EUA. Freeh foi contratado para examinar paralelamente as suspeitas contra Steinmetz no inquérito sobre as propinas na Guiné e coletar evidências que apontem para sua inocência.
Aqui voltamos ao caso da Vale, em que Sergio Moro está trabalhando. Enfraquecido pelo indiciamento na Suíça em setembro de 2019, Steinmetz foi obrigado pelo Tribunal de Arbitragem Internacional, em Londres, a pagar 2 bilhões de dólares à mineradora brasileira. A corte considerou que o israelense corrompeu o governo da Guiné sem o conhecimento da antiga sócia e por isso deveria arcar com o prejuízo da Vale.
Mas Steinmetz contra atacou. Em maio deste ano, apresentou à justiça de Nova York uma série de áudios que diz serem de ex-executivos da Vale confessando que sabiam da propina que rendeu a concessão.
Para gravar as conversas, investigadores contratados pelo israelense se fizeram passar por investidores do ramo. Em português claro, foi uma ação de espionagem.
Com essa carta que mantinha escondida na manga, Steinmetz espera reverter a decisão da corte arbitral britânica. Mas não só, claro. Ele também conta com o papelucho assinado por Sergio Moro.
A disputa entre Steinmetz e a Vale é um caso do direito internacional. É curioso que o bilionário israelense tenha apelado a Moro, cujo notório saber jurídico está na área criminal – até mesmo os críticos reconhecem que ele domina os códigos penal e de processo penal brasileiros.
Aqui vale olhar para o currículo de Moro no sistema Lattes. Nele, o ex-ministro bolsonarista lista seus artigos, livros e pós-graduações. Apenas um texto, em que ele é co-autor ao lado de outros dois autores, margeia o tema da disputa sobre a qual ele emitirá parecer – fala de lavagem de dinheiro e relações internacionais.
Fica a dúvida: em que Moro poderia ajudar a defesa de Steinmetz, nesse caso? Ou o bilionário deseja apenas brandir o nome e o prestígio do ex-juiz da Lava Jato em Londres?
Fizemos essas perguntas a Moro, e também o confrontamos com a ficha corrida de Steinmetz, que é notória – já foi alvo de extensas reportagens das revistas New Yorker e piauí e do jornal The Guardian. Ele se esquivou de respondê-las.
R$ 750 mil, afinal, são um bocado de dinheiro.