por Javier Gómez Sánchez
O maior risco que enfrentamos na elaboração desta Reforma Constitucional é que, na ânsia de fazer avançar o país para novos direitos e garantias, percamos aqueles herdados da Cuba de 1976. Essas conquistas não caíram do céu, mas surgiram sim da identificação majoritária do povo com a ética comunista, que sustenta o socialismo cubano. Ninguém sabe o que tem até que o perde. Tire-se a componente comunista e o socialismo cubano terá os seus dias contados.
Falando com um amigo sobre a reforma constitucional, comentávamos que a contrarrevolução parece não ter visto a tremenda oportunidade que lhe passou pela frente: o lançamento de uma convocatória popular totalmente aberta a todo o tipo de questões, que nem sequer deixa de fora o debate sobre o papel do Partido Comunista de Cuba na sociedade.
Sem dúvida, é o passo mais arriscado e revolucionário que, nestes tempos, deu o processo da Revolução Cubana.
Ou então, viram-na [a tremenda oportunidade], mas não têm a capacidade de subvertê-la e de dominá-la. Nem organização, nem discurso coerente e, muito menos, apoio popular. As mídias da contrarrevolução mais tradicional, por um lado, e os nascidos no calor da política de Obama, por outro, limitaram-se a falar superficialmente sobre um processo que cresceu e os superou, com o mesmo sentimento da raposa que sendo incapaz de chegar às uvas, diz que elas estão verdes.
Mas, passados estes meses, também me pergunto se alguns revolucionários não se precaveram do que foi colocado em cima da mesa, depois de dez anos de debate político e social em Cuba. A reforma constitucional é o culminar de um caminho de consulta da opinião popular, realizada em 2007 – as linhas gerais e a concepção.
Durante a última década, o país não se imobilizou e teve mudanças objetivas e subjetivas. Se, em 2007, as maiores preocupações dos cubanos estavam associadas às proibições existentes (das quais hoje quase não existem vestígios), ou à dupla moeda (ainda persistente), neste momento, o pensamento dos cubanos está associados a outras preocupações, muito diferentes.
Hoje, encontram-se facilmente mentalidades que, graças ao ” senso comum ” global, imposto pelas indústrias culturais e os média, lutam para se tornarem dominantes num país que, ao contrário do de dez anos atrás, tem agora mais de meio milhão de trabalhadores por conta própria e donos de negócios, aos quais se soma, indiretamente, um número maior de familiares e amigos.
Um setor privado que entra em contradição com as reais possibilidades de uma economia sem abastecimento, bloqueada e com escassa disponibilidade de dólares para importações. Com dezenas de milhares de cidadãos que encontraram um modo de vida como importadores informais de eletrodomésticos, peças e produtos. Que viveu as tensões das tentativas de controle estatal do transporte privado e a especulação na venda de produtos agrícolas, por exigência popular. Que chocou com a inexperiência de pagar impostos em cada mês e em cada ano. Que viu vender e comprar uma parte significativa das áreas residenciais da capital.
Com uma minoritária classe emergente, que acredita que não deve nada ao socialismo, porque o que a distingue foi obtido pela manipulação de capital: casa, carro, férias, viagens… e que convive com uma maioria que se debate mensalmente para conseguir consumir apenas o básico.
Essa minoria começa a ver como amarras os espaços sociais que, décadas atrás, o sistema concebeu e ainda mantém, com base na igualdade, enquanto que entre a maioria não enriquecida aparece quem, com ingênua energia, defende o direito da nova minoria rica a agir como tal, chegando a falar de “concentração honesta da propriedade”.
Um país que passou, entretanto, um curto mas intenso período de relações diplomáticas com os Estados Unidos, com uma mudança de estratégia do governo desse país nos seus planos de domínio da ilha, apostando em que essa nova minoria cubana economicamente emergente chegue a ser politicamente influente. Que passou ainda pela morte de Fidel e pelo apoio à passagem para outras mãos da direção de topo.
Uma nação cujos cidadãos passaram, em menos de uma década, de falar sobre a possibilidade legal de ter um celular, para falar sobre um mercado grossista para o setor privado. A verdade é que a Cuba de 2018 tem poucas semelhanças com a de 2008.
Desde que o texto do projeto da Constituição da República foi divulgado, e mesmo antes, quando na Assembleia Nacional os deputados debatiam o anteprojeto, uma das questões que causou preocupação foi a eliminação da menção ao comunismo, como aparece na Constituição de 1976.
Pessoalmente, não creio que a função do comunismo na Constituição seja a de aparecer como uma utopia, mas a de ser uma garantia essencial, cada vez mais imprescindível, na medida em que se tornam mais presentes as relações de mercado na atual e na futura sociedade cubana.
E vem daí a minha sugestão, sem diminuir o valor daqueles que preferem que apareça também no seu sentido de meta superior, que o ponto 58 do documento, Capítulo I, “Fundamentos da Nação”, artigo 13, parágrafo G, onde se diz: “Afirmar a ideologia e a ética inerentes à nossa sociedade socialista”, deveria dizer-se: “Afirmar a ideologia comunista e a ética martiana e fidelista inerentes à nossa sociedade socialista”.
Porque o socialismo não cai do céu e, nestas circunstâncias, o comunismo é muito mais necessário como ideologia útil e concreta do que como utopia.
Assim, a questão não é ter uma Constituição onde se mencione o comunismo, mas uma Constituição que seja comunista. Esse ligeiro extravio do cerne do problema pode pôr-nos nas mãos um texto constitucional com a palavra “comunismo” impressa em letras douradas, mas com pouco, muito pouco, ou nada do conteúdo das ideias comunistas.
O maior risco que enfrentamos na elaboração desta Reforma Constitucional é que, na ânsia de fazer avançar o país para novos direitos e garantias, percamos aqueles herdados da Cuba de 1976. Essas conquistas não caíram do céu, mas surgiram sim da identificação majoritária do povo com a ética comunista, que sustenta o socialismo cubano. Ninguém sabe o que tem até que o perde. Tire-se a componente comunista e o socialismo cubano terá os seus dias contados.
E o que necessita uma Constituição para ser comunista? Ou, melhor dito, para não o ser?
Não seria comunista uma Constituição que não mencionasse o direito dos cidadãos ao acesso às praias. Que não impedisse o lucro da livre oferta e procura na venda de produtos e serviços de primeira necessidade. Que não estabelecesse limites à concentração desmedida da propriedade em mãos privadas e se deixasse cair em tramoias baseadas na origem “honesta” da sua aquisição. Que definisse como empresas ” socialistas ” empresas que, sem o serem, se consideram como tal apenas por serem “estatais” e não pela sua projeção social. Que permitisse a introdução do pagamento em qualquer tipo de serviço relativo à saúde e à educação. Que não assumisse explicitamente como dever do Estado proteger os seus cidadãos da mendicidade e da indigência. Que, submetendo-se a forças poderosas, as assumisse como dominantes e abandonasse a dialética, preferindo renunciar à menção do matrimonio como “união entre duas pessoas”.
Neste período, chegaram a aparecer na televisão, sem qualquer contraditório, pelo menos no noticiário da Televisão Cubana, pessoas advogando que se comece a pagar os estudos de pós-graduação. E com uma lógica absurda, considerando que, se se é universitário, um mestrado ou um doutoramento é dar-se a um luxo. Segundo esse critério, seremos um país subdesenvolvido, onde os profissionais terão de escolher entre comprar um eletrodoméstico ou pagar um mestrado.
Outros, defendem que se paguem as cirurgias estéticas. Dizem isso com a ignorância de que é impossível (sob-risco de grave dano ou morte), separar a cirurgia estética de outros cuidados de saúde… Assim, dizem: se há pessoas que têm dinheiro, por que não cobrá-lo, vendendo-lhes serviços de saúde como se fossem um fim de semana num hotel de praia ou um serviço de manicura… Para um sistema de saúde e educação já assediado por desafios humanos e materiais para mantê-lo, a maneira mais rápida de destruí-lo seria – com a ambiguidade constitucional – criar a divisão entre aqueles que poderiam aceder a todos os serviços através do seu dinheiro e aqueles que só acederiam aos serviços que o Estado lhes pudesse garantir.
No mundo há muitas versões de socialismo. Mas em Cuba, o socialismo fidelista é só um. Os tempos mudam, a ética desse socialismo não.
Fontes: www.lajiribilla.cu/