Sem um bloco BRICS forte, coeso e harmonioso, um mundo multipolar organizado, pacífico e cooperativo estará ameaçado.
Hugo Dionísio
Houve muitas vozes de preocupação e consternação com o anúncio do Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, declarando a suspensão temporária de novas adesões ao bloco BRICS. Nuvens escuras logo apareceram sobre o mundo multipolar, especialmente quando foi anunciado que haveria uma lista de espera de 40 países dispostos a se juntar ao bloco. O anúncio de Lavrov foi tão inesperado?
Sem um bloco BRICS forte, coeso e harmonioso, um mundo multipolar organizado, pacífico e cooperativo estará ameaçado. A capacidade de fazer da cooperação econômica (principalmente) o pano de fundo contra o qual as contradições entre nações, unilateral e bilateralmente consideradas, serão marginalizadas em favor de um bem maior, do qual todos se beneficiam igualmente, é, na minha opinião, a grande força de um bloco como o BRICS.
No entanto, a história nos diz que os impérios não morrem em paz e que sua substituição por novas formas de governo — nem sempre mais avançadas — quase nunca é isenta de contratempos e solavancos no caminho. É por isso que é de se esperar que o poder hegemônico ocidental, liderado pelos EUA, continue, até que sua força, para impedir entendimentos coletivos que enfraqueçam seu domínio, esteja esgotada. O mundo multipolar é em si a negação de qualquer dominação hegemônica.
Então, enquanto todos puderam testemunhar a deriva do presidente Lula da Silva, exigindo da Venezuela Bolivariana o que ele não exige de nenhum outro país com eleições — que demonstre que suas instituições funcionam, não de acordo com sua respectiva lei nacional, mas de acordo com a Ordem Baseada em Regras — também é verdade que esse comportamento assustou todos que, como eu, anseiam e lutam por um mundo mais justo. A verdade é que o deslize do presidente brasileiro para a esfera narrativa imposta pelos EUA e sua ordem “internacional” levanta muitas questões quando se trata do BRICS.
Considerando esses fatos, qual o status da entrada da Venezuela no BRICS? O Brasil de Lula da Silva tem hoje condições morais para aceitar a entrada da Venezuela no BRICS? O que sobrará de sua imagem se aceitar, sem imposições ou condições? Voltará a apoiar uma Venezuela soberana? Que fraturas surgirão de uma atitude brasileira negativa em relação à entrada da Venezuela bolivariana no bloco (é dessa que estamos falando, a outra jamais entraria)? Não foi esse o verdadeiro golpe de Lula da Silva? Criar condições políticas para justificar a não aceitação da entrada da Venezuela no BRICS? E quem se beneficiará com isso? A que país, e a que bloco, interessa que as maiores reservas de petróleo do mundo não sejam integradas a uma esfera de cooperação econômica amplamente influenciada pela Rússia e pela China? Certamente não ao Brasil.
Quer essas questões tenham ou não uma base material para apoiá-las, a posição de Lula da Silva sobre as eleições venezuelanas coloca um profundo amassado na futura expansão dos BRICS na América Latina, já que depois da Argentina, que declinou, e do Chile, cujo presidente traiu a confiança do povo chileno, a Venezuela seria a próxima candidata. Afinal, mais uma vez, quem se beneficiará com o bloqueio da expansão dos BRICS na América Latina e Central?
Rússia e China certamente não gostaram nem um pouco dessa deriva, e embora não digam, não deixaram de lê-la pelo que ela é: uma tentativa de submeter a Venezuela a um processo político que a levará para a esfera da “Ordem Baseada em Regras” dos EUA. Colocando esse país no limbo em que todos os outros se encontram, com exceção de Cuba e Nicarágua. Eles querem pertencer ao mundo multipolar, mas não têm permissão para isso; poderiam deixar a ordem baseada em regras, mas não querem, ou não têm força e coragem para isso.
Embora essas questões estejam entre as sérias contradições a serem enfrentadas pelo bloco e que dificilmente serão respondidas na conferência marcada para Kazan em outubro de 2024, há outro processo que, na minha opinião, é muito mais pernicioso e perigoso para a própria existência do bloco. Um BRICS com suas características atuais e mantendo a capacidade de unir grupos políticos comprometidos com o multilateralismo. Trata-se da situação na Índia e das razões por trás da visita de Modi a Kiev, seu abraço a Zelensky e os maus-tratos sofridos e engolidos pelo presidente do país mais populoso, nas mãos do ex-presidente do país que mais perdeu população do mundo em tão pouco tempo. Algumas contagens recentes colocam a Ucrânia em 19 milhões de habitantes. Em 1991, eram mais de 50 milhões!
Alguns analistas indianos levantaram a possibilidade de que o presidente Modi tenha visitado a Ucrânia, entre outras coisas, porque precisava concluir a modernização e manutenção da frota Antonov (40 An-32s na Ucrânia e 65 na Índia), que está em andamento desde 2009. Aparentemente, de acordo com o site The Print, os russos estão se recusando a entregar peças para que a Ucrânia possa concluir o trabalho nos cinco aviões que estão lá. O outro motivo da visita se concentrou na cooperação na indústria naval, particularmente em relação aos motores de navios usados pela Índia, cuja fábrica Zorya-Mashproekt em Mykolaev foi destruída pelas forças russas em 2022. De acordo com o site Indian Defense News, Modi admitiu as recriminações de Zelensky para que a Bharat Forge comprasse 51% da Zorya, garantindo assim a produção de turbinas a gás navais. A Índia também está participando da pilhagem da Ucrânia. Como parece desde o início, Modi estava pagando tributo para que a Índia pudesse ficar com uma parte da riqueza nacional da Ucrânia.
Se você pode ver nisso a caricatura que resulta das razões pelas quais Modi foi a Kiev para “beijar as mãos”, querendo modernizar sua frota naval para poder enfrentar seu rival chinês, há outras situações que não apenas colocam os interesses dos países do bloco em oposição direta (como no caso Índia vs. China, em que a Índia corre militarmente para alcançar a China e serve como destino para as realocações de empresas que os EUA querem remover da RPC), mas também, e acima de tudo, aquelas que colocam os interesses dos países do bloco contra os interesses diretos dos inimigos da própria multipolaridade: os EUA. Por outro lado, o fato de a Índia estar instalando turbinas ucranianas em fragatas de fabricação russa (fragatas do Projeto 11356 a serem entregues nos próximos dois anos) é absolutamente significativo em toda essa complexidade.
A Índia é atualmente um grande exportador de armas leves, essencialmente. E quem é seu maior comprador? Os Estados Unidos (França e Israel também). Grande parte desse armamento consiste em munição, particularmente munição de 155 mm, a munição mais carente na Ucrânia. É bom ver que a Ucrânia é agora um destino para munição indiana, indiretamente, se necessário, transitando de Nova Déli para Washington e Paris e, lá, repondo estoques e liberando outros — ou os mesmos — para serem jogados em seu amigo e parceiro russo “estratégico”. Você quer uma contradição maior do que essa? A Índia, direta e indiretamente, compra tecnologia militar e fornece armas que serão usadas pelo exército contratado pela OTAN contra a Rússia. A Índia, agora um dos maiores exportadores militares do mundo, tem interesse direto na guerra de Donbass. Uma guerra travada pela OTAN contra um amigo importante.
E se o “apoio” da Índia a Kiev, por si só, coloca tudo em termos muito antiéticos e transparentes, tornando a hipocrisia e o cinismo os principais facilitadores das relações bilaterais e multilaterais nos BRICS, o que dizer do fornecimento de mísseis Brahmos, como também anunciado pelo The Print, para as Filipinas? Os mísseis Brahmos são mísseis de cruzeiro supersônicos (Mach 2.8) e foram desenvolvidos em um projeto conjunto com a Rússia. Esses mísseis também são antinavio e serão usados pelas Filipinas contra… a China! Mas não para por aí: as Filipinas estão a caminho de se tornarem a “Ucrânia” do Mar da China Meridional, usada pelos EUA como uma base naval monumental para seu projeto de “contenção” contra o gigante asiático. Finalmente, os EUA agora têm acesso privilegiado a uma das tecnologias de mísseis mais avançadas da Rússia. A nova versão desses mísseis (o Brahmos II) é hipersônica e evoluiu da primeira versão.
Agora, quando as contradições são políticas, todos tomaram nota; quando se tornam econômicas, muitos as desconsideram; mas agora, as contradições estão se tornando militares e em meio a uma corrida armamentista desesperada, da qual nem o Brasil escapa. Todos nós estamos cientes da ganância pelas empresas públicas brasileiras de armas sentida pelos países da Ordem Baseada em Regras. O Brasil contribuindo para o bombardeio da Rússia não seria apenas uma traição, mas esclareceria a situação.
Se não conseguirmos encontrar uma solução para todas essas contradições na esfera institucional e regulatória, chegará um momento em que alguma clareza emergirá dessa confusão. Algum tipo de síntese emergirá da tese e da antítese. Por enquanto, é minha opinião que a Rússia é a maior parte interessada (pelo menos momentaneamente) no sucesso do BRICS. A segunda maior parte interessada é a China. O BRICS é uma vacina (como a Organização de Cooperação de Xangai) contra tentativas de isolar esses dois países de outros países com influência internacional. Índia e Brasil têm muito interesse no BRICS, mas isso é difusamente considerado nesses países e reconciliado — quase nunca priorizado — com interesses relacionados a pertencer à Ordem Baseada em Regras (casos do G20), em certa medida, pelo menos. A África do Sul está em um limbo semelhante, mas com ainda menos escolha.
Então, não será fácil resolver esses problemas e o que acontecer em Kazan determinará o quão fundo Lula e Modi enterraram a farpa no coração da organização. O tempo dirá até que ponto cada um pressionará — ou enterrará — a organização. Se nos parece que a Rússia — e a China — estão puxando mais do que os outros… isso não é uma boa notícia para o mundo multipolar.
Esperemos que não seja nada!
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