Como a esquerda francesa salvou o regime político putrefato

Todos aqueles que foram salvos do precipício pela engenhosidade da esquerda e hoje se apresentam como campeões da democracia e da liberdade estarão saudando Marine Le Pen como a única capaz de garantir a ordem e a coesão social.

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© Foto: Domínio público

Eduardo Vasco

O grande perdedor nas eleições francesas não foi a extrema direita. É certo que, se não fossem os acordos espúrios entre a Nova Frente Popular e os Macronistas, o Reagrupamento Nacional teria crescido ainda mais. Mas o resultado do segundo turno não é exatamente uma vitória da esquerda.

Depois que o RN de Marine Le Pen liderou o primeiro turno das eleições, os líderes do NFP caíram na armadilha da imprensa francesa e de Emmanuel Macron, abandonando inúmeras candidaturas próprias para aumentar as chances da direita neoliberal ligada ao partido Renascença vencer a extrema direita.

A grande burguesia francesa pediu uma “frente republicana” para criar um “cordon sanitaire” formado pela esquerda e pela direita neoliberal para impedir uma vitória esmagadora da RN, o que levou a acordos em cerca de 220 distritos eleitorais para que o candidato com uma suposta chance menor de derrotar a RN abandonasse a corrida em favor do candidato com uma chance maior. Mas a maioria dos abandonos foi do NFP para que os aliados de Macron pudessem derrotar os aliados de Le Pen, embora o NFP tenha ficado em segundo no primeiro turno, muito à frente da coalizão de Macron.

Os rivais de extrema direita ficaram aliviados com os resultados, já que o parlamento agora está fragmentado e não é dominado pelo RN. Mas eles perderam a oportunidade de enterrar a direita macronista, ou seja, a direita neoliberal tradicional, que nos últimos anos vem abrindo caminho para o fascismo ao aplicar uma política cada vez mais parecida com a defendida por Le Pen.

De fato, a coalizão de direita governante perdeu 82 cadeiras na Assembleia Nacional, em comparação com as últimas eleições. Ela sofreu uma redução de um terço de seus deputados. Os republicanos, também da direita neoliberal tradicional, perderam um quarto de seus legisladores. A ala direita da Quinta República foi a maior derrota, sem dúvida.

Isso significa que seus votos foram divididos, com a maioria obviamente indo para a extrema direita. O RN aumentou sua bancada em 38%. A outra parte dos votos foi para a esquerda. O NFP ganhou 18% mais assentos do que nas últimas eleições. No entanto, foi a ala direita do NFP que capturou a maioria desses votos.

Enquanto o número de deputados eleitos pela França Indomável praticamente não mudou, o Partido Socialista passou de 30 para 59, dobrando o número de assentos no parlamento. O PS, como toda antiga social-democracia europeia (SPD alemão, Trabalhista britânico, PSOE espanhol), aderiu ao neoliberalismo há muitas décadas. Não passa de uma ala esquerda da Quinta República, ou seja, do atual regime imperialista francês – basta lembrar que o PS governou a França quando invadiu o Mali, é antirrusso e ajuda a sustentar o sionismo.

O outro partido da ala direita do NFP que se beneficiou nessas eleições foi o Verdes, que apresentou um crescimento de 18%. Portanto, as conclusões baseadas nos resultados eleitorais são as seguintes: 1) a direita neoliberal macronista foi a maior perdedora, mas não caiu no fundo do poço porque 2) a esquerda a salvou, com medo da extrema direita, embora 3) dentro das forças de esquerda, a grande beneficiária tenha sido a social-democracia neoliberal, que aplica um “neoliberalismo rosa” que pouco difere de Macron 4) a extrema direita foi meramente contida e, como disse Le Pen, sua vitória foi apenas “adiada”.

A tensão social não será contida

A grande burguesia imperialista francesa manipulou os resultados das eleições com o objetivo principal de conter as massas populares que vêm varrendo as grandes cidades com uma revolta crescente nos últimos anos. Uma aparente vitória da esquerda agrada a uma parcela dessas massas, que ainda acreditam que o PS e a LFI levarão seu país à transformação social.

Uma vitória da centro-esquerda, ou seja, dos reformistas tradicionais que agora são escolhidos pela burguesia para administrar a França, também contém momentaneamente a ascensão da extrema direita ao poder, o que dá mais tempo para negociações entre as diferentes alas da burguesia.

Todas as cidades com mais de 200.000 habitantes votaram esmagadoramente nos candidatos do NFP. Mas em Marselha, a segunda maior cidade do país, palco tradicional do movimento operário do sul, o RN conseguiu vencer em metade dos distritos eleitorais, o que serve de alerta sobre a possível direção de uma parcela do proletariado em direção à extrema direita.

Porque, no campo e nas pequenas cidades, o apoio ao RN já é bem visível. O campo francês é onde vive a grande base eleitoral da extrema direita. E ele tem uma força que não pode ser ignorada. Foram justamente os pequenos e médios produtores rurais que geraram uma crise enorme em toda a União Europeia entre o final do ano passado e o início deste ano, desfilando seus tratores por todas as metrópoles (e em 85% dos departamentos franceses), como se lembrassem do governo que eles existem e podem ajudar a derrubá-lo e transformar o país.

Assim como o proletariado urbano, as classes média e baixa do campo também estão irritadas com as políticas neoliberais. Nos últimos 40 anos, o Estado entregou todo o dever de fornecer infraestrutura às populações rurais ao setor privado. Mas o setor privado não investe no campo, porque não vê grandes retornos. Há muito menos hospitais e clínicas do que o necessário, por exemplo. Somente o Estado é totalmente capaz de garantir esses serviços, mas ele tem estado ausente nas últimas décadas.

Os jovens do campo, assim como os das cidades, são os mais afetados. Eles têm menos acesso à educação e, portanto, menos chances de sucesso no mercado de trabalho muito competitivo. Na última década, a taxa de jovens sem educação suficiente, sem emprego e sem concluir um estágio tem sido muito maior no campo do que nas cidades e as mulheres do campo também conseguem menos empregos do que os homens, em comparação com as mulheres das cidades. A ideologia woke, proclamada tanto pelo regime Macron quanto pela esquerda reformista do NFP, não resolve nenhum dos problemas dessas mulheres, que acabam sendo atraídas pela extrema direita.

Um dos principais pilares que sustentam o regime capitalista é a aliança entre a grande burguesia e a classe média, tanto na cidade quanto no campo. E esse pilar está caindo gradualmente, pois a qualidade de vida e as condições econômicas e materiais da classe média se deterioraram acentuadamente neste século. A única alternativa para melhorar a vida da classe média empobrecida é se aliar aos trabalhadores, que também estão cada vez mais insatisfeitos. Ambas as classes têm atacado o regime francês, mas não de forma unificada.

Quem poderia unificar essas classes para lutar contra o regime juntas, e assim inevitavelmente derrubá-lo, seria a esquerda francesa. O problema é que ela não está interessada em derrubar o regime, mas faz parte dele alegremente. E se faz parte do regime, é cúmplice. Cúmplice de um regime que explora e oprime a maioria da população. A extrema direita tem conseguido usar esse fato em sua propaganda para atrair as classes médias urbanas e rurais e parte do proletariado desorganizado, principalmente nas cidades menores, onde a desindustrialização é muito visível. Mas, como também demonstrou fazer parte desse regime – ao se alinhar a Macron em diversas ocasiões –, ainda tem grande rejeição entre as classes populares, que vêm se radicalizando, mas carecem de direção política.

Em todo caso, a extrema direita continua a crescer. E, embora a burguesia francesa ainda não tenha se unificado em torno da RN, a crise da direita tradicional está levando uma parte significativa dessa burguesia a apoiá-la. A tendência na França é que as classes populares, impulsionadas pelos trabalhadores urbanos, também entrem em conflito com a social-democracia e a esquerda em quem acabaram de votar, porque se ela formar ou fizer parte do novo governo, inevitavelmente continuará a odiada política neoliberal. Uma convulsão social, cada vez mais provável, ameaçará varrer o regime e isso significará que a parte da burguesia que hoje acredita que a ala esquerda de seus funcionários pode salvar o regime também passará a apoiar a extrema direita como a única força capaz de conter a revolta dos trabalhadores.

Assim, todos aqueles que foram salvos do precipício pela engenhosidade da esquerda e hoje se apresentam como campeões da democracia e da liberdade estarão saudando Marine Le Pen como a única capaz de garantir a ordem e a coesão social.

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