Por Alceu Castilho
Cid Gomes dirigindo um trator e sendo baleado por PMs mascarados é, desde já, uma das cenas mais emblemáticas deste século. A realidade supera — e muito — a ficção.
Antes de mais nada: área “militar” uma pinoia. As polícias militares, ainda que com esse nome, ainda que militarizadas, são polícias civis. Governadores não comandam exércitos. Essa prerrogativa é da União.
Talvez apareça até gente que se diz de esquerda dizendo que devemos defender o direito à greve. Ora, ora, eles não são proletários. Não esses. Policias civis e militares (todos, tecnicamente, civis) fazendo greve significa um levante contra o Estado. E não para qualquer coisa que se assemelhe com revolução. Apenas tomada de poder, extorsão. Armada. Golpe.
Ah, estou dando ênfase nos policiais e não na ação tresloucada do senador? Sim, é isso que temos de fazer neste momento. Com toda a aberração embutida na iniciativa, o risco oferecido por Cid Gomes à sociedade foi menor do que aquele oferecido pelos milicianos — e sim, é a isso que devemos dar o nome de milícia. (E não a máfias.)
E tudo isso com todos os problemas que o governo cearense tenha. E tem, aos montes. Sua inércia em relação ao que acontece no sistema penitenciário, à banalização da violência.
Policiais mascarados não dá para engolir. Para início de conversa. Essa aberração é a pior de todas, por mais que seja bizarro vermos um senador à frente de um trator. (E que ele seja proporcionalmente punido.)
Policiais mascarados dando toque de recolher significa a territorialização da monstruosidade a serviço do Estado. Em nome do Estado. Da área “militar”. Com balas compradas pelo Estado. Com capuzes costurados para desafiar o próprio Estado.
A cena de Cid Gomes é digna de Glauber Rocha. Acabamos de rever a sequência final de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, com outros personagens, nessa adaptação tecnológica da obra-prima de Glauber.
E não é que o Ceará tenha virado um maremoto. O que aconteceu hoje em Sobral mostra que o Brasil já virou um tsunami. E muita gente participou ativamente da eclosão desse tremor.
Muita gente. Não somente os policiais mascarados. O irmão de Cid que disse “Lula tá preso, babaca”. Governadores reféns dos embriões desses mascarados. Falsos patriotas que tiraram selfies com policiais nas manifestações pelo golpe e policiais golpistas que tiraram selfies com manifestantes nos dias do pato, do golpe do pato.
E muita, muita gente mais. A imprensa que avacalhou o país e que agora chora (e temos de chorar) a violência sexual contra uma jornalista ecoada pelo presidente, esse que é ao mesmo tempo o trator e os mascarados, essa síntese da violência, ao lado de seu irmão quase siamês, Guedes, o mercado, Jairzinho das Mortes e sua cambada de filhos psicopatas, não somente os filhos genéticos.
Tudo isso é muito sintético. O Brasil assiste a uma das imagens mais definitivas sobre seu processo de implosão.