O pensador Noam Chomsky, natural do Estado norte-americano da Filadélfia, aos 93 anos, é uma voz ativa no que se pode chamar de definição da sociedade em que vivemos. O autodenominado anarquista escreve, realiza palestras, concede entrevistas e está na linha de frente daquilo que acredita ser o certo. Integrante do movimento progressista europeu Diem25, Chomsky alertou sobre os riscos das mudanças climáticas e se tornou um flagelo para o governo do então presidente norte-americano Donald Trump.
“Nos Estados Unidos, as tentativas de desenvolver medidas sociais simples são bloqueadas pela ideologia neoliberal.”.
Noam Chosky
Chomsky conquistou o posto de um dos maiores intelectuais vivos da esquerda norte-americana; além de pai da linguística moderna, tendo estabelecido, na década de 1950, a teoria da gramática generativa. Autor prolixo, filósofo renomado e ativista incorruptível, ele foi preso por se opor à Guerra do Vietnã, colocado na lista negra por Richard Nixon e apoiou a publicação dos Documentos do Pentágono.
Anarquismo
Incorruptível, mas também pragmático, dedicou-se, por exemplo, a pedir o voto de Joe Biden nas eleições de 2020. Desde 2017 mora em Tucson (Arizona), onde concedeu a entrevista por meio digital, em face da pandemia, em uma videoconferência com a jornalista Amanda Marte, correspondente-chefe do diário conservador espanhol El País, nos EUA, com base em Washington, onde acompanhou de perto a invasão do Capitólio.
“Com pontualidade também incorruptível, os cabelos grisalhos do velho professor aparecem na tela na hora exata. Os anos quebraram sua voz, mas não seu pensamento. Ele expande as respostas, mas não divaga e responde a todas as nuances. Seu livro Sobre o anarquismo acaba de ser reeditado em espanhol (Capitão Swing). O velho professor vai falar sobre isso, mas também, algo que geralmente lhe custa, sobre si mesmo”, escreve Mars em sua coluna do El País, neste sábado.
Leia, adiante, os principais trechos da entrevista:
— E essa pandemia também não oferece uma oportunidade para esse tipo de catarse, um “podemos sair disso juntos”?
— Deve ser e há alguns sinais disso se você descer ao nível da comunidade. Você encontra pessoas cooperando e ajudando umas às outras. As favelas do Brasil estão entre os lugares mais miseráveis do mundo e durante essa pandemia vimos como as mesmas gangues criminosas que as aterrorizaram estão organizando as pessoas para lidar com essa situação e se ajudar. Mas se formos aos líderes dos principais países, constatamos que eles monopolizam as vacinas e pedem que as multinacionais farmacêuticas mantenham o controle exorbitante das patentes, direitos concedidos por um regime neoliberal que se opõe ao verdadeiro livre comércio.
— O senhor diz que os Estados Unidos estão abrindo caminho para o protofascismo, por que os movimentos de extrema direita estão avançando tanto, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Europa?
— O capital privado e a riqueza privada assumiram a liderança. Claro, eles sempre dominaram o sistema, também na Espanha, mas nos últimos 40 anos eles ganharam poder e riqueza avassaladores. A Rand Corporation, que é uma instituição muito respeitada, fez um estudo sobre a transferência de riqueza da classe trabalhadora para a classe alta e descobriu que 90% da população havia perdido peso na riqueza em favor dos mais ricos, em favor dos mais ricos. O 1% mais rico, principalmente.
E há muitas outras maneiras de roubar das pessoas. Ronald Reagan abriu as portas para paraísos fiscais, por exemplo. Foi uma época muito destrutiva para os trabalhadores. Em termos reais, um trabalhador do sexo masculino ganha o mesmo que em 1979. Na Europa, os programas de austeridade prejudicaram os pobres e enriqueceram os ricos. Isso levou a um ressentimento que é um terreno fértil para demagogos como Donald Trump ou Viktor Orbán e eles estão capitalizando isso.
— Um ano após o ataque ao Capitólio, quais são as consequências?
— Foi uma tentativa de derrubar um governo eleito. E foi muito explícito por parte de Trump: “As eleições foram roubadas, vamos ao Capitólio”. Uma tentativa de derrubar um governo eleito é um golpe. Foi uma tentativa violenta de golpe. Um grupo de republicanos recusou-se a fazer parte dela e impediu-a de ter sucesso. Mas essa tentativa agora foi seguida por um ‘golpe suave’, que está acontecendo todos os dias diante de nossos olhos.
Os republicanos estão planejando cuidadosamente para que da próxima vez seja bem-sucedido. (Por meio de reformas eleitorais em diferentes Estados conservadores) estão garantindo que as pessoas que administram as eleições tenham o poder de anular votos e estão aprovando dezenas de leis para impedir que pessoas ‘erradas’, minorias e pessoas pobres votem (através do endurecimento dos requisitos para votar).
O Partido Republicano não é mais um partido político, é um partido neofascista. Os Estados Unidos são uma sociedade tecnologicamente e culturalmente avançada, mas é pré-moderna em outras áreas. E Trump é um demagogo muito eficaz, ele soube sacudir os venenos que correm sob a superfície da sociedade norte-americana e os trouxe à tona. Agora há um grupo que o venera como Duce II, escolhido por Deus. É o povo que invadiu o Capitólio. A democracia norte-americana está em grave perigo.
— E você acha que Trump poderia concorrer ou até vencer em 2024?
— É muito possível. Ele tem uma base raivosa de devotos que o adoram. Ele tem os líderes do Partido Republicano aterrorizados, todos eles correm para Mar-a-Lago (área de Palm Beach, na Flórida, de propriedade do ex-presidente) para engraxar os sapatos e obter sua bênção. Se conseguirem com o golpe atual em curso, controlar e modificar o sistema eleitoral, podem ganhar. Lembre-se que temos um sistema eleitoral muito reacionário, que dá às áreas brancas, rurais e conservadoras uma vantagem estrutural avassaladora. Por exemplo, no Senado, um Estado como Wyoming, com 578 mil habitantes, tem dois votos. A Califórnia, com 40 milhões, tem dois votos. Se agora os EUA quisessem entrar na União Europeia, o Tribunal de Justiça Europeu iria derrubá-lo. Se tivéssemos perguntado à minha avó se ela era oprimida, ela não teria entendido. Saber o que é dá trabalho.
— O primeiro ano do governo Biden foi mais progressivo do que você esperava?
— Bem, eu não esperava muito, francamente, mas os programas nacionais foram melhores do que eu esperava. Eles foram amplamente projetados por Bernie Sanders, que representa a ala mais progressista do Partido Democrata. Mas eles foram cortados pela oposição e quase nada foi alcançado. O principal (o grande plano de reforma social chamado Build Back Better, que é a maior expansão do estado de bem-estar social em décadas) é extremamente necessário. Os Estados Unidos são um país atrasado em benefícios sociais. Tomemos por exemplo a licença de maternidade, existem cerca de seis países no mundo que não a têm. Bem, os republicanos se opõem (à medida). E Joe Manchin (o senador democrata centrista) o bloqueou. É o país mais rico do mundo, mas as tentativas de desenvolver medidas sociais simples são bloqueadas pelo capital privado e pela ideologia neoliberal.
— Chomsky, por mais estranho que pareça, se define como um conservador diante da mudança social — comenta Mars.
— Entre os muitos usos do termo conservador, um é o liberal clássico. O termo ainda é usado, mas não no sentido que seus criadores pretendiam. Wilhelm von Humboldt disse que se o artesão produz algo bonito por encomenda, admiraremos o que ele fez, mas desprezaremos o que ele é, alguém que trabalha por encomenda, não conforme o que cresce em seu desenvolvimento interno. Esse é o cerne do liberalismo clássico e, nesse sentido, sou conservador — responde Chomsky.
Destruição ambiental
Ainda segundo o pensador, “além disso, em outros aspectos, acho que nossas instituições básicas precisam de mudanças muito substanciais e radicais, mas não acho que possa ser feito assim. É preciso construir um debate para isso”, explica.
O intelectual norte-americano permanece exasperado com a resposta política ao aquecimento global.
— A destruição ambiental está chegando, gostemos ou não, e nossas instituições não estão em condições de lidar com isso, como vimos em Glasgow (na conferência do clima). A principal decisão que tomaram foi adiar a decisão para o próximo ano e, enquanto isso, a terra está queimando — acrescenta.
Em sua opinião, “os grandes bancos dizem palavras bonitas sobre a necessidade de fazer algo, mas o que estão fazendo é financiar combustíveis fósseis com trilhões de dólares. Essas são nossas instituições e, se não pudermos controlá-las, estamos acabados”, conclui Chomsky.
Fonte: CdB