Capitalização da Previdência: o que é e como escapar da armadilha chilena?

A reforma da Previdência de Bolsonaro sobreviveu ao 1º teste de fogo e passou pela Comissão e Constituição e Justiça. Agora, o governo se prepara para defender o projeto em terreno mais espinhoso: a Comissão Especial, que analisa o mérito da pauta. No debate, a capitalização que substituiria o atual modelo de repartição. Mas você sabe o que é isso?

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Rafael Neddermeyer / Fotos Públicas

O pagamento de pensões e aposentadorias no Brasil funciona no chamado regime de repartição. Com origem que remonta à constituição de 1934 — que estabelecia de forma inédita a responsabilidade do Estado, do empregado e do empregador no custeio do pagamento de aposentadorias —, este sistema funciona com trabalhadores mais novos sustentando o pagamento dos benefícios de aposentados.

O sistema funcionou bem durante um tempo. De acordo com o IBGE, em 1940 a expectativa de vida ao nascer no Brasil era de 45,5 anos. Ao mesmo tempo, entre 1940 e 1960, a taxa de fecundidade do Brasil cresceu de forma acelerada: isso significa que havia muita gente nova entrando no mercado de trabalho constantemente e estas pessoas morriam cedo, garantindo a saúde do sistema previdenciário (muitos contribuindo, mas poucos de fato recebendo).

A pirâmide etária, porém, sofreu uma mudança brusca. Graças à universalização da saúde médica, dos padrões de higiene e da urbanização da população, a expectativa de vida subiu constantemente desde então. Em 2017, era de 76 anos. Da mesma forma, brasileiros têm cada vez menos filhos: para exemplificar, em 1960 a família padrão tinha, em média, 6,3 filhos enquanto em 2018, esse número é 1,7.

A matemática é simples: há cada vez mais pessoas idosas que dependem das aposentadorias e cada vez menos pessoas nascendo para sustentar este sistema no longo prazo. Pior: projeções do próprio IBGE indicam que a partir de 2050, 25% da nossa população será idosa.

Como sustentar tanta gente, se aposentando mais cedo que a média mundial e sem comprometer as contas públicas? A equipe de Bolsonaro propõe uma solução: o sistema de capitalização.

Capitalização: os prós e os contras

No sistema de capitalização, a aposentadoria funciona como uma espécie de poupança compulsória. Cada trabalhador poupa um valor por mês e ao se aposentar, o valor do benefício será diretamente proporcional ao acumulado ao longo da vida. Isso tira o peso do custeio de benefícios dos mais jovens e joga sobre os próprios trabalhadores.

Mas nem tudo é tão simples e o primeiro problema é o mais básico de todos: nossos cofres não sustentam um sistema de capitalização puro. Se as contas do governo não fecham atualmente devido ao enorme rombo causado pela previdência, a capitalização pioraria o quadro no curto prazo, já que, a partir da implantação, as pessoas passariam a poupar para elas próprias e não mais para ajudar a sustentar a aposentadoria dos mais velhos.

Caberá, portanto, ao próprio Estado pagar integralmente a aposentadoria de quem já recebe por ter contribuído com o sistema de repartição, até que essas pessoas morram. Especialistas divergem, mas estimativas médias dão conta de que seriam necessários de 10 a 20 anos para que uma reforma da previdência nos moldes do que quer a equipe de Bolsonaro faça real diferença nas contas públicas. Até lá, teríamos 12% do PIB comprometidos anualmente para o pagamento dos aposentados.

Outro ponto polêmico é o tempo mínimo. O sistema de capitalização só seria sustentável se um trabalhador fosse capaz de poupar dinheiro o suficiente para se bancar até morrer. Como homens atualmente se aposentam em média com 55,6 anos e mulheres com 52,8 anos, a estimativa é que brasileiros passem cerca de 21 a 24 anos recebendo o benefício do INSS.

Ainda assim, a instituição de tempo mínimo de contribuição e de idade são altamente impopulares em uma população que, a despeito das distorções de classes sociais, não consegue se visualizar ainda trabalhando na 3ª idade.

Capitalização no Chile mostra que modelo não garante sucesso

No Chile, o modelo de capitalização foi adotado em 1981, ainda no governo militar. A implementação foi coordenada pelos chamados “Chicago Boys”, alunos da escola liberal da Faculdade de Economia de Chicago, nos quais se inclui o ministro Paulo Guedes.

Embora seja apontado como grande fator que permitiu a industrialização e o crescimento do PIB per capita no país, o sistema de capitalização começa a dar sinais de colapso. Aposentados chilenos recebem de 30 a 40% do salário mínimo local, que desde março deste ano está na faixa dos R$1736 (CLP 301 mil), valor bem distante do prometido pelo sistema no início (o governo Pinochet alardeava que seria possível se aposentar com até 70% do último salário recebido).

Doutor em Economia e professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV EPGE), o economista Renato Fragelli avalia que o Chile errou ao não definir um programa assistencial para a aposentadoria de pessoas mais pobres.

“O modelo bom é aquele em que haja no 1º nível, uma faixa exclusivamente assistencial e não-contributiva, remunerado com receitas gerais do governo apenas para os pobres. Poderia ser, digamos, um programa que assegurasse para qualquer um pelo menos meio salário mínimo. A partir daí, a complementação se daria por capitalização. O Chile, porém, jogou tudo na capitalização. Eles têm mesmo um programa social que é minúsculo e com os juros baixos, a aposentadoria ficou baixa”, analisa o professor.

Fragelli diz não ser favorável a um sistema de capitalização que abarque toda a população porque o valor a ser poupado por quem ganha o salário mínimo não seria o suficiente para, por si só, custear a aposentadoria do trabalhador.

“Para os que ganham muito pouco, [a capitalização] não é realista. No Brasil, ela deveria valer para quem ganha acima do salário médio da economia, que é R$2.200 por mês, já um valor baixíssimo”, defende.

A transição da repartição para o modelo chileno custa caro. Estatísticas do governo local mostram que foi preciso queimar três vezes o valor do PIB para fazer o sistema valer em sua plenitude. Uma vez em vigor, ele se mostrou insuficiente para cobrir salários minimamente dignos para todos os aposentados, forçando uma reforma em 2008 justamente no sentido contrário: aumentando o gasto estatal para complementar a renda dos aposentados, dessa vez sem nenhuma contribuição dos trabalhadores para ajudar a fechar a conta.

Além do Chile, Colômbia, México e Peru — que também possuem regime de capitalização — começam a rever as políticas relativas à aposentadoria. Em alguns casos, projetos em discussão nestes países equivalem ao oposto proposto por Guedes: uma reforma da previdência às avessas, que demande ao Estado a conta na distorção entre benefícios pagos e o custo de vida em ascensão.

E vai passar?

Para custear uma reforma nos moldes chilenos, a cifra de R$1 trilhão em economia nos próximos 10 anos — inicialmente planejada por Guedes — seria primordial para a saúde das contas públicas.

Parlamentares, porém, já se mostram veementemente contra o corte no Benefício de Prestação Continuada (pago a idosos mais pobres) e mudanças na aposentadoria rural. Resignado, o próprio Bolsonaro disse aceitar uma reforma que desidrate a economia para R$800 bilhões.

Paulo Guedes admitiu no início de abril que sem a economia inicialmente prevista, será necessário abrir mão da capitalização. Frageli acredita que o governo Bolsonaro não será capaz de aprovar a reforma do jeito que foi proposta e, portanto, é possível que o país demande uma legislação ainda mais dura no médio e longo prazo.

“Se o governo conseguisse, o que eu acho absolutamente impossível, que o Congresso aprovasse exatamente aquilo que foi proposto, inclusive o BPC, a potência fiscal da reforma seria tão grande que a gente poderia pensar em um regime de capitalização para os futuros trabalhadores. Mas a reforma vai ser aguada e vamos continuar com o mesmo sistema que temos [repartição], porém com um déficit menor”, avalia o economista, para quem “os filhos do presidente fazem o que querem com endosso tácito do pai”, atrapalhando a articulação política por uma reforma sustentável.

Fragelli argumenta que a gestão Bolsonaro “gasta muito capital político em bobagem” e faz uma previsão nada otimista: uma reforma desidratada — como já admite o presidente “logo na largada” — dará folga nas contas públicas por meros seis anos.

“Seria necessário uma gestão mais bem orquestrada [para aprovar], mas o governo arranja inimigos desnecessários. É uma inabilidade do presidente, dos ministros — com exceção do Paulo Guedes e do [Sérgio] Moro —, aquele monte de gente perdida. Difícil”.

Do Sputnik

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