Claudia Bonan/Nanda Duarte
Ficções distópicas nos afetam porque, ao mesmo tempo em que causam estranheza, parecendo escapar à compreensão lógica e inteligibilidade histórica, margeiam as suas fronteiras e de lá nos espreitam, como se perguntando: “e se…?”
Transformada em série televisiva de grande sucesso, a conhecida novela de Margareth Atwood, “O conto da Aia”, tem ressoado essa angústia entre muitas mulheres brasileiras frente ao cenário político dos últimos anos. E se estivermos mais próximas das aias do que jamais imaginamos?
O giro conservador que espreita o Brasil do século XXI, que agora bate forte em nossas vidraças, é um retrocesso. Uma volta a um lugar que críamos haver ultrapassado. Mas e se representar algo para além disso?
E se estivermos sendo arrastadas para um projeto de sociedade supremacista, fundada jurídica e ideologicamente na misoginia e no racismo? E se estivermos instituindo a legalidade e legitimidade da fratura entre humanos e não humanos?
Nesse sentido, a tentativa de aprovar no Congresso a tramitação em regime de urgência do PL 1904 – cunhado PL da gravidez infantil, da gravidez forçada ou do estupro pelas feministas – revela muito. Mas, também, ignora, desvia e distorce fatos.
Depois de protestos que levaram milhares às ruas, os deputados se viram obrigados a anunciar, na terça-feira 18 de junho, a criação de uma comissão com integrantes de todos os partidos para debater esse projeto no segundo semestre. É uma medida para ganhar tempo face às grandes manifestações contrárias.
O projeto em questão ignora que o aborto é evento comum na vida das mulheres brasileiras. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA, 2021) mostrou que 10% das mulheres entre 18 e 39 anos de idade já haviam realizado ao menos um aborto na vida, sendo que em 52% dos casos elas tinham 19 anos ou menos quando fizeram o primeiro aborto. Ignora ainda que abortos realizados em condições inseguras têm sido uma das causas mais comuns de mortalidade.
Quando reivindica mais restrição ao aborto legal, esse PL desvia o foco do fato de que a atual legislação sobre aborto no Brasil já é bastante restritiva, permitindo a interrupção da gestação somente em caso de gravidez resultante de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal.
Enquanto a Pesquisa Nacional do Aborto estima que meio milhão de abortos induzidos foram realizados pelas brasileiras em 2021, apenas dois mil procedimentos legais foram realizados no mesmo ano, em todo o país. Em 2019, apenas 3,6% dos municípios brasileiros contavam com algum serviço de aborto legal, com grande concentração na região Sudeste.
Ao propor ampliar a criminalização das pessoas que abortam, incluindo as vítimas de violência sexual que realizam aborto legal, o PL produz a perversa distorção de revitimizar as mulheres, colocando-as no banco dos réus com penas superiores às de seus estupradores.
O PL localiza no aborto legalizado um “crime” mais hediondo do que a violência sexual de que essas pessoas foram vítimas. Hedionda, na verdade, é a realidade em que mais de 20 mil meninas menores de 14 anos “viram mães” anualmente no país, em decorrência de estupro de vulnerável, sendo-lhes negado o direito ao aborto legal.
Apenas 100 (cem!) meninas por ano, têm acesso à interrupção da gravidez decorrente de estupro. Trata-se, portanto, de um projeto alinhado aos mecanismos sistemáticos de proteção ao estuprador e anulação dos direitos das vítimas que caracterizam a cultura do estupro no país.
Uma agenda de retrocessos para o país
O PL 1904 revela as veias abertas do projeto conservador da extrema direita brasileira, que visa o retrocesso em uma agenda de direitos reprodutivos construída a duras penas desde 1940. Equipara o Brasil a países autocráticos, muitos dos quais teocracias fundamentalistas. Ao legitimar a tortura da gravidez forçada, viola a dignidade e preceitos fundamentais de meninas, mulheres e pessoas que podem gestar.
Também aprofunda a criminalização, a estigmatização e a desumanização das populações negras, periféricas e pobres, pois são as mulheres e pessoas negras as que mais morrem em consequência de abortos inseguros, as mais processadas por aborto e as que mais encontram barreiras nos cuidados pós-aborto.
A “defesa da vida” feita pelos parlamentares que promovem o PL da gravidez forçada é um jogo cínico e monetizado. Ela não alcança as vidas de crianças e adultos perdidas pela violência policial em favelas e bairros pobres, não chega às crianças abusadas por autoridades religiosas, políticas e outros poderosos e nem àquelas desaparecidas nas malhas das redes de tráfico de seres humanos.
O que vislumbram é o controle dos corpos e sexualidades das mulheres e pessoas que podem gestar, principalmente das populações subalternizadas. E o controle de corpos e sexualidades é capital político e moeda de troca de jogos de interesses e barganhas para maximizar ganhos econômicos, políticos e simbólicos no parlamento brasileiro – uma espécie de “economia política do sexo”, como discutiu a antropóloga norteamericana Gayle Rubin.
A farsa argumentativa não para por aí. Os grupos extremistas que propõem o PL 1904 são os mesmos que atuam deliberadamente para impedir políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva que poderiam, inclusive, contribuir para o enfrentamento da cultura do estupro.
São os mesmos que se posicionam contra a educação sexual nas escolas, mais acesso a métodos contraceptivos e a ampliação da oferta dos serviços de aborto legal em todo o país, melhorando o acesso aos cuidados em tempo oportuno, em situações de aborto.
O Código Penal brasileiro de 1940 não estipula um tempo gestacional máximo para a fruição do direito ao aborto em nenhum dos casos previstos. Com o PL 1904, tenta-se introduzir um limite temporal para a interrupção da gravidez resultante de estupro, quando o motivo primário que fundamenta a exclusão de ilicitude – a violação sexual – permanece contraditoriamente intocado.
Desse modo, no projeto das forças extremistas de direita, a cultura do estupro chega a uma radicalidade que aprofunda e expõe o ódio e a desumanização das mulheres e, de maneira mais específica, dos corpos pobres, pretos e periféricos.
Se, nestes dias, é o direito ao aborto legal em caso de estupro que está em questão, espreitam nas gavetas do parlamento brasileiro o estatuto do nascituro, o retorno do trabalho infantil, os projetos de lei que solapam a Lei Maria da Penha, a lei do feminicídio, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento de direitos humanos e de cidadania das populações LGBTQIA+ e os direitos fundamentais da população encarcerada, entre outros.
Essas propostas não são peças soltas. Compõem uma agenda dentro e fora das casas legislativas que envolve a organização política dos fundamentalismos religiosos, dos milicianismos, dos movimentos supremacistas masculinistas (como Red pill e Incell), sob as bençãos do rentismo nacional e global, que nenhuma ilusão de bem-estar, inclusão e vida em comum tem mais a oferecer.
As mulheres e a sociedade democrática reagem
O avanço da tramitação do PL da gravidez forçada gerou fortes reações das forças democráticas da sociedade, o que levou a um recuo temporário e estratégico na votação do projeto. Porém, não se pode mais baixar a guarda na mobilização contra os retrocessos. Não se trata de um somatório de investidas conservadoras isoladas, mas de um projeto de país.
É urgente não somente responder aos ataques do conservadorismo de extrema direita, como o PL 1904 e outros, mas avançar com coragem na construção de um projeto robusto de uma sociedade de justiça – e que só pode ser de justiça se for de gênero, étnico-racial, erótica, econômica, social, climática.
Um projeto em que não cabem mais titubeios na defesa do aborto livre, cuidado e irrestrito, em nome de uma (impossível) conciliação com aqueles que vivem do ódio às mulheres, do racismo e da homofobia. Como é necessário que façamos acontecer para que aquela pergunta breve – E se…? – não cause o arrepio sombrio de sentir que a distopia se avizinha.
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