Após STF reconhecer a lei estadual do Ceará que proíbe a aplicação aérea, outros estados tentam barrar prática
Por Hélen Freitas, Agência Pública/Repórter Brasil
O fim da aplicação de agrotóxicos por meio de aeronaves — também conhecida como pulverização aérea — está em discussão em dez estados do país, de acordo com levantamento inédito da Repórter Brasil.
Os projetos de lei (PLs) tramitam nas assembleias legislativas de unidades da federação que respondem por grande parte da produção agropecuária e por um elevado consumo de agrotóxicos do país, como Pará, Mato Grosso e São Paulo.
Na União Europeia, a pulverização aérea de pesticidas e outras substâncias tóxicas está proibida desde 2009, por causa de potenciais danos à saúde e ao meio ambiente gerados pelas chamadas “chuvas de veneno”.
No Brasil, por enquanto, só o Ceará tem uma legislação que veda a prática — a “Lei Zé Maria do Tomé”, batizada em homenagem a um ativista ambiental assassinado em 2010, no interior do estado.
Há quatro anos, a lei vinha sendo questionada por uma ação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade alegava que o estado do Ceará não poderia proibir uma atividade regulamentada pela União. Também argumentava que a lei violava a livre iniciativa.
No entanto, no final de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade pela constitucionalidade da lei cearense — o que abre espaço para que a medida seja aprovada em outros estados.
Relatora da ação no STF, a ministra Cármen Lúcia destacou em seu voto “os perigos graves, específicos e cientificamente comprovados de contaminação do ecossistema e de intoxicação de pessoas pela pulverização aérea de agrotóxicos”.
Novas leis podem surgir
A recente medida do STF deu fôlego a parlamentares de todo país que tentam proibir a aplicação de agrotóxicos por aeronaves em seus estados.
“É uma decisão que vai mudar os parâmetros dessa prática que vem se tornando um dos maiores riscos ambientais ainda pouco percebidos pela sociedade”, avalia o deputado estadual Carlos Bordalo (PT-PA).
A Assembleia Legislativa do Pará conta com o projeto de lei (PL) em estágio mais avançado de tramitação no país. Apresentado em 2019, a proposta já recebeu pareceres favoráveis em três comissões. Agora, Bordalo tenta levar o texto para votação em plenário.
Outro a comemorar a decisão do STF é Lúdio Cabral (PT), deputado estadual do Mato Grosso. “A decisão do Supremo é importante porque assegura a competência que os estados têm para legislar sobre essa pauta”. Neste ano, Cabral já apresentou seis PLs que restringem o uso de agrotóxicos — um deles proíbe a pulverização aérea.
O Mato Grosso é o principal consumidor de agrotóxicos do país. Em 2021, cerca de 150 mil toneladas de pesticidas foram vendidas no estado, um aumento de 13% em relação ao ano anterior. Para ganhar mais visibilidade, Cabral planeja converter a proposta em um projeto de lei de iniciativa popular, com coleta de assinaturas da população.
Deputado estadual de São Paulo, Carlos Giannazi (PSOL) também assina um PL sobre o tema. Entidades ruralistas se manifestaram contra a proposta, sob o argumento de que o banimento da pulverização aérea reduziria a produção agrícola paulista.
O parlamentar, contudo, diz que a proteção à saúde pública e ao meio ambiente devem ser a prioridade. “Não dá para afrouxar, porque a situação é muito grave”, diz Giannazi, que está organizando uma audiência pública sobre o assunto.
Segundo reportagem publicada pela Repórter Brasil, diversos agrotóxicos cancerígenos são lançados de avião no estado.
No Ceará, apesar de a proibição da pulverização aérea ter sido confirmada pelo STF, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), autor da Lei Zé Maria do Tomé, afirma que as tentativas de esvaziar os efeitos da legislação não chegaram ao fim.
“A pulverização aérea estava proibida desde 2019, continua proibida, mas agora setores do agro estão se movimentando para tentar derrubar no legislativo a minha lei”, afirma Roseno. Além disso, dois PLs tramitam na Assembleia Legislativa do Ceará para autorizar a aplicação de agrotóxicos por drones, o que hoje é proibido no estado.
Proibição nacional
Também há projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, em Brasília, para banir a pulverização aérea em nível federal. Até hoje, porém, nenhuma das propostas chegou a ser avaliada pelas comissões da Casa.
Uma delas é de autoria do deputado federal João Daniel (PT-SE). Segundo o parlamentar, a decisão do STF mexeu com a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) que apoia projetos que intensificam o uso de agrotóxicos no país.
“A preocupação da bancada ruralista é que essa lei seja aprovada em outros estados. Eles estão preparando através da FPA modos de barrar esse prosseguimento”, diz o deputado. Ele avalia que a força da bancada ruralista e a composição da Câmara impedem que projetos como esse avancem em Brasília.
Apesar disso, Daniel afirmou que irá se reunir com o presidente Lula e tem encontro marcado com o presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, Rui Falcão (PT-SP), para que seu PL seja encaminhado.
“Se virmos que não tem condições de a pauta passar, vamos chamar os movimentos e o Fórum que trabalha contra os agrotóxicos para acertar um acordo”, diz Daniel.
Uma das medidas em estudo é aumentar a distância entre as áreas pulverizadas e os locais frequentados por pessoas, como escolas e residências.
Atualmente, o Ministério da Agricultura proíbe a pulverização aérea a menos de 500 metros de cidades, povoados e mananciais, ou a menos de 250 metros de moradias isoladas.
Apesar de haver regras claras sobre a aplicação, a falta de fiscalização faz com que comunidades sejam atingidas por “chuvas” de veneno.
O Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag), que participou da ação no STF, afirma que o setor é altamente fiscalizado e que a decisão da corte reforça um “preconceito contra a aviação agrícola”.
“Devemos ampliar ainda mais as ações de comunicação do setor e aproximação com a sociedade – aprimorando canais para desmistificar a tecnologia aeroagrícola”, afirma o sindicato.
Procurada, a CNA não respondeu às perguntas da reportagem.
Lei Zé Maria do Tomé
Aprovada em 2019, a lei leva o nome de José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, executado com 17 tiros em abril de 2010.
O líder comunitário e ambientalista lutava pela proibição da pulverização aérea de agrotóxicos em Limoeiro do Norte (CE), município na Chapada do Apodi — região produtora de banana e que sofre com o aparecimento de câncer, doenças neurológicas, puberdade precoce, entre outras enfermidades e distúrbios relacionadas ao uso de pesticidas.
Ainda vivo, Zé Maria chegou a ver a aprovação de uma lei municipal que proibia a aplicação de agrotóxicos por aviões. Contudo, um mês após sua morte, o texto foi derrubado. A prática só seria banida no Ceará nove anos depois, por lei estadual.
Fonte: Agência Pública