Adolescente é assassinado dentro de comunidade terapêutica evangélica mantida com recursos federais

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Por Clarissa Levy

Semanas antes de morrer, Lucas Pedreira Rosa prometeu à mãe que levaria a vida nas leis de Deus e trabalharia para comprar um Siena sedã para levá-la à igreja aos domingos. Ele estava na etapa final do tratamento na Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim quando foi assassinado com golpes de enxada na cabeça, desferidos por outro adolescente internado.

Se estivesse vivo, no próximo dia 15 de novembro Lucas voltaria a viver com a família. Em fevereiro de 2020, com 16 anos, ele foi internado na comunidade terapêutica buscando se recuperar do uso prejudicial de drogas. Desde a morte do pai, a quem era muito apegado, Lucas tinha se desestruturado emocionalmente e começado a usar maconha, álcool e inalantes de forma desenfreada.

“Eu estava desesperada sem saber como ajudar meu filho, até que uma pessoa da igreja indicou a Maanaim”, conta a mãe, Aline Rosana da Silva. Ela pesquisou na internet, gostou do site, soube que o governo federal poderia pagar a internação e decidiu pelo tratamento. “Por ser uma clínica evangélica, eu confiei, achei que seria tudo certinho, nas regras de Deus”, lembra.

Lucas, que já havia passado por atendimento psicológico algumas vezes, aceitou bem a proposta de internação. No dia 20 de fevereiro, deu entrada oficialmente na Maanaim, entidade localizada nas bordas do pequeno município mineiro de Itamonte. Ficou combinado que seu tratamento seria custeado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), braço do Ministério da Justiça que estabelece convênios diretos com comunidades terapêuticas. Pela internação de Lucas, a Maanaim recebeu da instância federal R$ 1.596,44 por mês.

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Lucas e sua cachorra Dalila, “ele dava tanto, tanto carinho para ela que às vezes eu até ficava com ciúmes” conta sua mãe – Arquivo pessoal

Desde 2013 e com mais força a partir de 2018, o governo federal investe recursos diretamente em clínicas do tipo. No ano passado, quase 70% da verba foi repassada para comunidades terapêuticas cristãs, segundo levantamento da Pública. Apesar de denúncias de maus-tratos e irregularidades, o financiamento e a força política dessas entidades só crescem. Convertidas na principal aposta do governo para tratamento de usuários de drogas, as comunidades terapêuticas têm algumas diferenças entre si, mas muitas semelhanças.

Como a entidade onde Lucas ficou internado, a enorme maioria trabalha com tratamento baseado em isolamento social, espiritualidade e trabalho, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Distantes dos grandes centros e muito restritivas em relação à comunicação dos internos com o “mundo exterior”, muitas vezes as comunidades se tornam ambiente propício à violação de direitos por estarem longe dos olhos da sociedade. “Eu nunca soube de verdade como era o tratamento do meu filho porque toda vez que ele falava comigo tinha alguém atrás monitorando”, lembra Aline.

Apesar do sólido investimento público, as entidades são pouco fiscalizadas. Segundo levantamento do The Intercept, a partir de dados conseguidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), 59% das comunidades terapêuticas que recebem verba do governo federal não haviam sido inspecionadas entre 2014 e 2019. Mas o caso da entidade onde Lucas ficou internado é diferente. Em 2017, a comunidade terapêutica havia sido fiscalizada e sido cobrada pelo Ministério Público Federal (MPF) a adequar seu tratamento às regulamentações do setor.

Passados três anos desde a publicação de denúncias de tratamento irregular, violência física, tortura e maus-tratos aos internos da Desafio Jovem Maanaim continuam sendo relatados, como mostra a Agência Pública. Apesar de receber mensalmente R$ 1.596,44 por adolescente internado, no dia a dia a Maanaim não conta com uma equipe de trabalho qualificada ou com um projeto terapêutico de tratamento que garanta os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme relatos obtidos pela reportagem.

“Quando eu internei meu filho, eles me garantiram que sempre ia ter alguém cuidando dele, olhando ele”, diz Aline. “Mas, para você ter uma ideia, quando ele tava lá há uns cinco meses, queriam transformá-lo em monitor e dar para ele a tarefa de olhar os outros adolescentes”, lamenta a mãe.

Aline acredita que, se o tratamento da Maanaim não fosse tão negligente, seu filho ainda estaria vivo. “Como eles põem três adolescentes para trabalhar com ferramentas sem supervisão?”, pergunta repetidamente. Apesar de nos documentos a Maanaim contar com psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, na prática, conforme relatos dos adolescentes internados ouvidos pela Pública, quem cuida da rotina da entidade são monitores adolescentes ou ex-internos que viraram obreiros da igreja Maanaim. Ainda conforme os adolescentes, o cotidiano da internação é extremamente violento e o controle, exercido na base de ameaças, castigos e pauladas.

No caso de Lucas, a mãe nunca soube se antes do óbito o menino sofreu alguma outra agressão. Durante a internação, os momentos de conversa com o filho sempre foram monitorados. Nos dez minutos semanais em que podia falar com Lucas por uma chamada de vídeo, percebia que o menino estava sempre ansioso, olhando para os lados, agitado.

Nas conversas, Lucas costumava dizer para a mãe que, apesar de querer ir embora, estava bem e ele gostava de ter se encontrado novamente com Deus. A distância, Aline achava que a internação corria bem. No prontuário de Lucas, ao qual a Pública teve acesso, há anotações de que ele aderia ao tratamento cristão e progredia. Na família já estava tudo preparado para o retorno do adolescente.

Até que, no final da tarde do dia 7 de agosto, Aline recebeu uma ligação do pastor Amarildo Silva, da Desafio Jovem Maanaim. “Ele foi seco. Disse que tinha uma notícia para dar, falou que Lucas tinha morrido e ainda descreveu para mim como a enxada tinha ficado fincada na cabeça dele”, contou com a voz forte apesar das lágrimas escorrendo. “Agora eu só quero que justiça seja feita, porque eu internei meu filho lá para ser cuidado, confiei a vida dele e recebi um corpo”, lamenta a mãe.

Após a mãe receber a notícia, o corpo do adolescente lhe foi encaminhado. “E ninguém nunca ligou para me confortar ou mesmo compareceu ao enterro.” Para ela, outra tristeza enorme foi receber as roupas do filho todas sujas, malcuidadas, em saco preto de lixo. “É difícil aceitar até hoje”, diz.

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Lucas gostava de videogame e milk-shake. Na foto tirada pouco antes da internação, o adolescente posa segurando um controle de videogame junto com a mãe – Arquivo pessoal

Dois adolescentes que estavam na Maanaim contaram à Pública que, no dia da morte de Lucas, todos os outros internos foram trancados em seus quartos e proibidos de comentar o assunto.

Na mesma tarde, os dois adolescentes que estavam no chiqueiro com Lucas e haviam fugido foram localizados e levados à polícia, segundo consta no boletim de ocorrência do caso. O menino de 16 anos que assumiu o crime foi encaminhado ao serviço socioeducativo.

Apesar da morte de Lucas e das denúncias de violações de direitos humanos e torturas, a entidade continua habilitada para receber repasses públicos. A Pública tentou por três semanas contato com a Senapred, secretaria do Ministério da Cidadania responsável pelos tratamentos e fiscalizações nas comunidades terapêuticas, mas não obteve resposta.

Internação de adolescentes: contexto atual

Em meio ao auge da pandemia de coronavírus, no dia 24 de julho, o governo federal regulamentou oficialmente, através do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), a internação de adolescentes em comunidades terapêuticas. Antes do documento, as internações já ocorriam, mas sem o aval de uma regulação. A mudança regulatória chama atenção, pois enquadra oficialmente o modelo de internação em comunidades terapêuticas como uma política pública.

Uma pesquisa do Ipea estima que no Brasil uma em cada quatro comunidades terapêuticas acolham adolescentes. Após a regulação, o financiamento público para as internações de menores de idade nessas entidades tende a crescer, visto que a principal aposta do governo para tratar usuários de drogas é a internação em comunidades terapêuticas.

A decisão do governo de oficializar a internação de adolescentes gerou muita controvérsia entre especialistas, gestores de saúde e conselhos nacionais dedicados à garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Primeiro porque, desde 2019, os representantes da sociedade civil foram arbitrariamente retirados do Conad, por meio de um decreto de Bolsonaro. Sem pesquisadores e representantes da sociedade, as decisões do conselho foram prejudicadas e perderam o caráter democrático, declarou em uma conferência o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena.

No início de agosto, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) manifestou preocupação com a condução das políticas públicas ligadas à saúde mental pela administração federal. Segundo o PFDC, o Conad coloca os adolescentes numa lógica de institucionalização que contraria as diretrizes básicas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Lei nº 10.216/2001 – marco na luta pela proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.

Também se colocaram contra a regulamentação da internação dezenas de pesquisadores e entidades, entre elas o Conselho Nacional de Direitos de Crianças e Adolescentes (Conanda) – órgão oficial que delibera sobre políticas no assunto – e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) – instância responsável por nortear os cuidados em saúde no Brasil. Em uma recomendação técnica enviada ao Ministério da Cidadania, Ministério do Desenvolvimento Social e MPF, os conselhos solicitam a revogação da resolução justificando que o Conad não tem competência para tratar de assuntos relativos à infância e juventude sem consultar os conselhos responsáveis por garantir o ECA, entre outros argumentos.

Para Marisa Helena Alves, coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do CNS, a regulamentação traz ameaças sérias à saúde e aos direitos dos adolescentes que fazem uso prejudicial de drogas, porque esse público precisa de atendimento especializado. Em entrevista à Pública, ela explicou que o desmonte que o governo vem promovendo da Rede de Atendimento Psicossocial (RAP) abre a porta para o crescimento das internações como única saída possível.

“A gente observa que há uma circulação de pessoas ligadas às comunidades terapêuticas e ao governo que estão aqui em Brasília, promovendo e alcançando benefícios para as comunidades terapêuticas.” O crescimento do financiamento para as entidades ao longo dos anos tem sido articulado por lobbies de grupos religiosos junto ao governo, sobretudo após a gestão de Michel Temer.

“O problema é que muitas das comunidades terapêuticas não são serviços de saúde, não estão preparadas para cuidar dos adolescentes. Internar acaba sendo por vezes uma solução para a sociedade, para a família, mas não pro adolescente.

Fonte: Agência Pública

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