Acha que a ditadura foi uma ‘maravilha’? Esta pequena lista prova que não

História pode ficar cega ou obscura por algum tempo, mas não consegue nunca ser apagada

AI-5
AI-5 fez recrudescer repressão do regime militar no Brasil, inaugurando fase mais dura da ditadura

Por: Eduardo Reina

Censura e controle informacional sempre foram armas das ditaduras. Mentiras também. No Brasil não deixou de ser diferente. Fazendo exercício de memória é possível verificar hoje que os ditadores que presidiram o Brasil de 1964 a 1985 conseguiram controlar a percepção do povo. Conseguiram esconder mutas ações que ocorriam ao nosso lado, no dia a dia.

Por isso e outros fatores, uma boa parcela da sociedade brasileira ainda crê que a ditadura civil-militar brasileira foi maravilhosa. Ao mesmo tempo, esse segmento de brasileiros não sabia e não sabe até hoje o que significou e representou ações e atos dos ditadores-presidentes. Como por exemplo o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Segundo pesquisa Datafolha, metade da população brasileira não sabe o que foi o AI-5. Muito menos quem o decretou, quando, e a razão disso.

Tal percepção, ou falta de, é devida a censura, a manipulação dos fatos e narrativas. Mais do que isso, é a prova da manipulação educacional e política de milhões de cidadãos. É a privação da formação de opinião, da participação como cidadão na vida social e política nacional. É a promoção da alienação em prol de um projeto ditatorial de domínio político de um país e dos cofres dessa nação.

Aqui está uma pequena lista de fatos e ações dos generais-ditadores-presidentes que os brasileiros com idade maior que 40 anos vão conseguir se lembrar. A lista contém situações corriqueiras, coisas do cotidiano, que eram julgadas como normais por muita gente.

Essa lista serve também para que os brasileiros hoje conheçam a ditadura e não deixem que isso aconteça mais.

1 – O dedo-duro

Em todas as reuniões, encontros, ruas, entidades, empresas, prédios de habitação, quarteirão havia um dedo-duro, aquela pessoa que na gíria miliar era denominado “informante”. E nem sempre esse informante tinha certeza do que estava delatando. O informante agia, sei lá, por ideologia, “amor à pátria”, vingança, retaliação, por dinheiro.

Meu amigo jornalista paraense Paulo Roberto Ferreira conta uma história clássica de deduragem, que redunda num semidesastre, numa situação cômica, e mesmo num erro gravíssimo.

Paulo lembra de uma militante da Juventude Católica (Juc), em Belém do Pará, chamada Elza, que namorava um piloto de avião. Num determinado dia, esse namorado chegou na casa dela num táxi carregando uma caixa e pediu para ela guardá-la. Dias depois, a Polícia Federal bateu na porta da garota. Agentes invadiram a residência e começaram a revirar tudo. Os policiais disseram que estavam procurando armas, que um homem com sotaque espanhol havia deixado ali.

Então ela puxou uma maleta que estava debaixo de uma cama e a mostrou aos agentes da repressão. Era uma caixa de ferramenta que o piloto utilizava, pois também era mecânico de aviação.

Foi João Januário Furtado Guedes, irmão da garota Elza, quem recebeu os policiais federais na porta de casa, conforme ele mesmo relembra. “Recebi os PFs na porta da casa da minha mãe, onde morava. Guardava em meu quarto uma quantidade de caixas, cujo conteúdo não tinha conhecimento. Fui salvo pela chegada de minha irmã Elza, que só ela sabia sobre as ferramentas do namorado”.

Moral da história: a PF acreditou na denúncia de uma pessoa que alegava ter visto um homem suspeito que havia deixado na casa uma mala que poderia ser armas. Foi o motorista de táxi.

Outra história e equívoco envolvendo um dedo-duro está registrada no livro “Cativeiro sem fim” (2019). Durante a guerrilha do Araguaia, os militares queriam sequestrar o filho de um dos líderes do levante, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Sabiam que ele teve um relacionamento amoroso com mulher local chamada Maria. Que ela era branca e de olhos claros. O fruto desse relacionamento era um menino, que teria idade em torno de cinco ou seis anos.

O informante achou uma Maria, mulher branca de olhos claros, mãe de um menino nessa faixa etária, chamado Juracy. Entregou tudo aos militares, que sequestraram o garoto. Só que a vítima não era o filho de Osvaldão. O garoto que eles procuravam era filho de outra Maria, mulher branca e de olhos claros moradora na mesma região, e que tinha um filho com as mesmas características de Juracy. Uma trapalhada só. Mas tempos depois o verdadeiro filho de Osvaldão, chamado Giovani, foi encontrado e sequestrado.

Ainda dentro do item deduragem, abro uma brecha para mostrar que a ação de informantes também era compulsória.

Nos edifícios de apartamento, porteiros e síndicos tinham obrigação de enviar ao Dops local, periodicamente, relatórios sobre atitudes e pessoas que eles consideravam suspeitas entre moradores e visitantes.

Nesse quesito, quem relembra um fato é a historiadora e editora Joana Monteleone, que chama a ação de “espionagem nos prédios”.

Os porteiros registravam em livro nome, número de documento e algum número de telefone de contato de todo visitante – algo que ainda persiste hoje por questão de segurança. Depois, esses porteiros tinham que comunicar sobre os suspeitos ao “inspetor de quarteirão” ou aquele agente de repressão que representava a região.

Prova desse expediente de espionagem é a historiadora Tânia Bessone, que conta o que aconteceu com ela e o marido logo depois de se casarem em 1972. Eles foram morar em um prédio recém construído no Rio de Janeiro, e “no dia da mudança, o porteiro (depois de um tempo achei que era policial, nunca confirmei, mas agia como) nos obrigou a preencher uma ficha enorme com muitos dados pessoais. Ele disse que era decisão da assembleia do condomínio”.

Joana Monteleone também lembra que a espionagem rolava solta dentro das empresas e fábricas. Os setores de relações humanas, o atual RH, que na época era chamado somente de departamento pessoal, também listavam funcionários que eram considerados suspeitos ou exerciam atividades política-sindical. Sem contar que os sindicatos de trabalhadores eram controlados por interventores.

Nas fábricas, os trabalhadores que eram incluídos nas listas de suspeitos, chamada “lista negra”, passavam por complicações, ou eram presos e muitos torturados, ou então perdiam seu emprego. Alguns nunca mais conseguiam outro trabalho simplesmente por constar na tal “lista negra”.

Isso aconteceu muito nas empresas e fábricas localizadas na região do ABC.

Já nas empresas estatais havia um esquema mais sofisticado, com servidores colocados em determinadas áreas somente para espionar e dedurar os funcionários considerados de esquerda. A maioria militares.

2 – Extremo patriotismo nas escolas

As escolas na época da ditadura tinham como obrigação colocar os alunos, logo cedo pela manhã, perfilados ao lado da bandeira brasileira, para cantar o hino nacional. Em suas residências, os estudantes eram bombardeados com propagandas ufanistas do governo, como o Brasil, ame-o ou deixe-o”, entre outras.

O jornalista Ênio Taniguchi ressalta uma situação que lhe marcou naquela época. “Era a obrigação de fazer uma fila militar e depois cantar o hino nacional diariamente antes das aulas”. Ênio diz que outros hinos também eram entoados diariamente, com a mão no coração, como hino da República, do Exército, ou do município em que se morava.

No antigo ginásio, hoje ciclo fundamental, os ditadores militares introduziram duas disciplinas no currículo escolar que depois continuavam no colegial, hoje ensino médio, até chegar às universidades, lembra a jornalista Rosaly Brito, do Pará. No ginásio era a Educação Moral e Cívica, que se transformava em Organização Social e Política Brasileira (OSPB) no colégio.

“Tive a mesma professora de Educação Moral e de OSPB, que era casada com um latifundiário aqui da região do Marajó. Lembro que quando o país comemorava os 150 anos da independência (1972), ela pediu que fizéssemos um trabalho mostrando os governos republicanos do Brasil, de Marechal Deodoro da Fonseca até Médici. Aprendemos na cadeira escolar que a história republicana brasileira havia sido uma tranquilidade. Me lembro muito bem desse meu trabalho, que se fosse hoje, com a consciência do que aconteceu no país, eu me envergonharia de ter feito, certamente. Naquela época, não havia de forma alguma a ideia de golpe militar. Nem durante a ditadura do Estado Novo, nem na ditadura de 1964. A história oficial era contada como se não tivesse havido nenhum sobressalto. Mas sabemos que foi exatamente o inverso. Essa história mostra o grau de alienação educacional a que estávamos expostos na ditadura”, explica.

Já nas universidades públicas, os alunos tinham que apresentar “atestado de antecedentes” para fazer matrícula anualmente. A historiadora Tânia Bessone lembra disso: “Estudei no IFCS/UFRJ e todos os anos, para a matrícula, tínhamos que ir até a Rua da Relação, no Dops, e pegar um atestado de idoneidade moral para poder fazer a matrícula na faculdade”.

3 – Autorização para viajar ao exterior

Essa determinação não atingia muita gente, mas os brasileiros que precisavam viajar ao exterior precisavam de “autorização” da polícia, além do passaporte, para sair do país.

Tal obrigação ditadora está retratado no filme “A vida invisível”, do diretor Karim Ainouz. A personagem principal Eurídice Gusmão queria viajar para fora do Brasil e, além da autorização da polícia, precisou também de um documento assinado pelo marido.

4 – Vergonha da farda

Na edição desta quarta-feira (01/07) do jornal Folha de S.Paulo, o colunista Ruy Castro descreve outro desses fatos que estavam ocorrendo ao nosso lado, mas que poucos tomavam conhecimento. “Os que acreditavam que a ditadura foi uma maravilha ignoravam que, por muitos dos 21 anos que ela durou, militares na ativa e de qualquer patente evitavam andar fardados na rua, para não se exporem a uma hostilidade muda”.

Como se vê, a história pode ficar cega ou obscura por algum tempo. Mas não consegue nunca ser apagada. Daí a importância de se conhecer nossa história em todos seus detalhes, para evitar que fatos como esses nunca mais se repitam.

Fonte: Opera Mundi

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