A enchente no Sul desencadeou surto de propaganda anarquista na direita brasileira

No Brasil criaram-se duas fantasias: a de que as Forças Armadas são praticamente comunistas, porque são positivistas, e que tanto FHC quanto Lula fazem parte de um teatro das tesouras que quer instaurar o comunismo no Brasil.

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© Photo: ebc.com.br

Bruna Frascolla

A enchente no Rio Grande do Sul foi grande o bastante para aparecer no noticiário internacional. Dentro do Brasil, duas narrativas diversionistas foram difundidas pela esquerda e pela direita liberais ou libertárias a fim de ocultar o estado catastrófico da infraestrutura pública. Antes de vê-las, frisemos que há um plano federal para prevenção de desastres nacionais engavetado desde 2012 – o que pega a presidência de Dilma Rousseff (indicada de Lula), de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, além do terceiro mandato de Lula. No entanto, a incompetência salta aos olhos no nível estadual. O exemplo mais espantoso é o da promessa, feita pelo governador Eduardo Leite no passado, derrubar o feioso muro de contenção de enchentes para criar uma área bonita a ser administrada pela iniciativa privada. Eduardo Leite é o primeiro gay assumido a governar o Rio Grande do Sul e é pró-mercado. Para liberais de esquerda e direita, isso é tudo o que deveria importar.

À esquerda, a narrativa diversionista é que tudo é culpa das “mudanças climáticas” – ainda que o muro de contenção tenha sido construído após a grande enchente de 1941. Como esse já é um disco arranhado, não acho que valha a pena nos aprofundarmos. A novidade, mesmo, foi a campanha intensa contra o Estado promovida pela direita – que nem sei se podemos chamar mais de liberal, pois parece ter passado o umbral do anarquismo.

Vejam bem: é normal haver campanha contra o governo, qualquer que seja o governo; é normal haver crítica à ineficiência do Estado brasileiro; é normal reivindicar um Estado mínimo e atribuir suas falhas ao “inchaço”. O que me parece inédito é o discurso de que o Estado brasileiro é um mal em si mesmo e que obsta a solidariedade entre as pessoas. Era normal ser liberal no Brasil; não era normal exigir o fim do Estado, muito menos em meio a uma catástrofe causada, em parte, por falta de infraestrutura.

Para que não se diga que estou exagerando, vou citar um trecho do artigo “O Estado ciumento e a guerra espiritual travada no Brasil”, do antropólogo Flávio Gordon, para um dos mais importantes veículos de direita do país: “A tragédia das enchentes no sul do país deixou algo muito claro: o Estado brasileiro não é apenas ineficaz. Não peca apenas por omissão. Demonstra um ódio ativo à eficácia e à boa ação dos particulares. Em termos morais, o Estado brasileiro não se contenta em ser mau. Nutre ódio pelos bons. O Estado ressente-se da caridade particular, e busca uma vingança contra os que praticam o bem. Parece mesmo haver nisso algo de um orgulho satânico – algo da inveja de Lúcifer por Nosso Senhor Jesus Cristo. É por isso que, a todos os cidadãos empenhados em socorrer as vítimas, bem como aos que denunciam os entraves estatais à caridade direta entre as pessoas, resta-nos orar por proteção divina. Que Deus guie e proteja os justos!”

Se um colunista com formação acadêmica, num jornal tradicional, está dizendo que o Estado brasileiro é do capeta, o leitor só pode tentar imaginar o que corre pelo WhatsApp e pelo Telegram.

Em meio à mentira, como sói acontecer, havia um grão de verdade: de fato, o Estado brasileiro não estava preparado para lidar com uma catástrofe dessa dimensão e enviou o Exército para fazer o possível; de fato, a solidariedade foi importante para minorar os efeitos; de fato, uma autarquia federal de trânsito (a ANTT) multou por excesso de peso caminhões que chegavam com donativos. Foi o que bastou para dar verossimilhança à ideia de que o Estado brasileiro odeia quem faz doações, que seus burocratas impedem doações de chegar, de modo que o Estado é do capeta e precisa e, portanto, precisa acabar.

Essa falsa versão dos fatos se insere no anticomunismo barato que é promovido pelos apoiadores da OTAN. Se no Leste europeu a memória da mão férrea de Stálin alimenta um neonazismo esdrúxulo e pró-capitalismo, no Brasil criaram-se duas fantasias: a de que as Forças Armadas são praticamente comunistas, porque são positivistas, e que tanto FHC quanto Lula fazem parte de um teatro das tesouras que quer instaurar o comunismo no Brasil. O grande promotor dessa dupla narrativa era o propagandista Olavo de Carvalho, que morreu em 2022, mas deixou como legado uma legião de influencers de redes sociais e colunistas de jornais (é o caso de Flávio Gordon, citado acima). Essa gente não era anarcocapitalista; defendia o liberalismo econômico e o conservadorismo nos costumes. Ao mesmo tempo, empreendia uma campanha contra o Exército brasileiro, que às vezes chamavam de posivitistas maléficos, e às vezes de burocratas que apenas mamam das tetas do Estado sem se preocupar com o país.

Como os militares não deram um golpe de Estado em 2022 para impedir que Lula assumisse a presidência, os olavistas parecem ter resolvido não só que o Exército não tem nenhuma serventia, como tampouco o Estado brasileiro. Daí resulta o seu explícito anarcocapitalismo. Fora do olavismo, havia os liberais fundamentalistas de mercado e os anarcocapitalistas. Desde a tragédia do Rio Grande do Sul, porém, o bloco da direita capitalista está uníssono garantindo que o Estado brasileiro é, no mínimo, dispensável (no máximo, é do capeta).

Outra coisa que me chamou a atenção foi a invocação da II Guerra. Na Revista Oeste, tanto em artigo como no programa de Youtube do dia 10 de maio, a comentarista Ana Paula Henkel citava Churchill e comparava o desastre do Rio Grande do Sul à retirada de Dunquerque, por causa do uso de barcos por civis. Churchill é apresentado como vencedor único do nazifascismo. (Enquanto escrevo este artigo, dou uma olhada no programa da Oeste ao vivo e vejo um apresentador exaltando a reconstrução de pontes pelos braços dos voluntários gaúchos, sem necessidade do Estado.) No mesmíssimo dia 10 de maio, um influencer seguidor de Olavo de Carvalho que foi ao Rio Grande do Sul postava uma cena de Churchill falando da importância de combater Hitler. Parece pouco provável que ambos tenham pensado por conta própria em Churchill para tratar de enchentes – e Ana Paula Henkel, até onde eu saiba, não tem histórico olavista; é uma jogadora de vôlei aposentada.

Falando em influencers, esse seguidor de Olavo tampouco é original em sua decisão de arrecadar donativos e ir ao Sul fazer caridade com o dinheiro alheio debaixo de holofotes. O pivô da história dos caminhões foi o influencer um sem pretensões intelectuais ou ideológicas (mas com pretensão de virar prefeito de São Paulo ou presidente do Brasil) chamado Pablo Marçal: um coach cujas insólitas lições e histórias rendem memes e piadas (por exemplo: segundo ele, deve-se assustar a onça ou o leão fazendo cara de doido, e socar a cara de um tubarão, em vez de fugir desses bichos). No frigir dos ovos, o que a direita pedia era que o cidadão parasse de acreditar no governo e nas mídias sociais para acreditar num loroteiro folclórico da internet. E houve quem acreditasse.

Isso porque a sua posição de milionário que faz as coisas sozinho contra o Estado o coloca no mesmo rol que Elon Musk (que doou satélites para o Rio Grande do Sul). Ambos são o Atlas revoltado de Ayn Rand – que nada mais é que um Übermensch cansado de pagar impostos, a crermos na opinião de John Gray (Cf. Sete tipos de ateísmo, Record, 2021). Então de repente a direita quer convencer o brasileiro de que o seu Estado é do capeta e Pablo Marçal é quem está aí para salvá-lo da enchente, distribuindo sopapos em tubarões e fazendo cara de doido pra onça. No que depender da propaganda direitista Lula fica mil anos no poder.

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