Mesmo que os judeus tenham a propensão de manter certa unidade cultural na diáspora, o Brasil dá liberdade de serem indivíduos avulsos, exercendo uma pressão grupal sobre o judeu.
Mesmo com toda a romantização do Holocausto e com uma intensa presença da esquerda na vida cultural, as questões do antissemitismo e do sionismo só viraram moda no Brasil no ano passado, com a explosão do Hamas em 7 de outubro. Nesse pouco tempo, o gentio brasileiro mais atento terá percebido que a politização do judaísmo é muito intensa nos Estados Unidos e que, quando há um estridente militante antissionista, muito provavelmente se trata de um judeu asquenazita de esquerda – e não de um árabe, por exemplo. No Brasil há uma imensa presença árabe, mas isso não é muito relevante para exercer uma pressão pró-Palestina. Por outro lado, nos EUA há uma imensa presença judaica asquenazita, e é nesse país que os estudantes realizam acampamentos mobilizadores pró-Palestina.
A explicação para essa discrepância é simples: os países árabes não são todos inimigos de Israel, e os brasileiros descendentes de árabes não são reivindicados pelos Estados nacionais do outro lado do mundo. Já os judeus brasileiros – mormente os asquenazitas, que são os inventores do movimento sionista – têm do outro lado do mundo um Estado nacional que se legitima alegando ser o seu único porto seguro neste orbe repleto de abomináveis antissemitas. Por isso, toda barbaridade cometida por Israel é cometida em seu nome , sobretudo se eles tiverem vítimas do Holocausto na família. Se o gentio fica chocado com tais barbaridades, o judeu asquenazita de esquerda fica também pessoalmente ofendido e ultrajado. (Embora o sionismo tenha sido um movimento laico e de esquerda durante parte de sua história, hoje é uma coisa religiosa e de direita.)
Outra coisa interessante é observar que a propaganda da direita americanófila, sobretudo evangélica e liberal econômica, tenta fazer crer que todo judeu é de direita, e apresenta a esquerda como intrinsecamente antissemita. O nazismo era coletivista e não era liberal econômico, logo, era de esquerda, logo, o asquenazita furioso que pede o fim do Estado de Israel é praticamente Hitler – mas aqueles que fazem a denúncia irão omitir de propósito que tal antissemita é, na verdade, um judeu cujos parentes foram para o campo de concentração.
E assim, o gentio que observa de fora terá concluído que é mais fácil considerar que parte dos judeus asquenazitas, entre os séculos XIX e XX, trocou de profeta e substituiu Moisés por Karl Marx, de modo que a comunidade hoje está rachada em duas partes que se odeiam. Como os asquenazitas estão espalhados pelo Ocidente, mantêm correspondência e ainda por cima fundaram um Estado nacional lá no Oriente Médio que é banido pelos EUA, a briga interna deles está presente em toda parte, inclusive no Brasil. Mas só agora enxergamos. Por que isso?
Elites políticas e intelectuais pouco judaicas
Ao contrário dos EUA (e da vizinha Argentina), o Brasil tem uma comunidade judaica proporcionalmente pequena, de pouca importância na política partidária e até na intelectualidade. Se pensarmos em políticos judeus de importância nacional, teremos de procurá-los em quadros comunistas. Veremos então que se detiveram na seara intelectual, como Jacob Gorender. No entanto, são dignos de nota figuras como Jaques Wagner (indicado do PT ao governo da Bahia) e David Alcolumbre (membro da importante comunidade sefardita da Amazônia que veio para o Brasil no ciclo da borracha), além da indicação de juristas judeus ao STF pelo PT (pelo menos Barroso, Fux e Lewandowski).
Ainda assim, mesmo que os judeus tendem a se destacar nas atividades intelectuais, a intelectualidade brasileira é muito pouco judaica. O típico homem de letras brasileiro vem de uma família católica com várias gerações do Brasil e ganha notoriedade com a anuência das oligarquias tradicionais – ou ao menos era assim antes de a Nova República chegar e dar mais espaço à ingerência das ONGs. Seja um conservador como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, ou um marxista como Caio Prado Jr. e Moniz Bandeira, o perfil cultural do intelectual brasileiro típico é esse.
Isso não se segue, claro, que os judeus têm pouca importância econômica no Brasil. Há, porém, uma diferença bem grande, para a percepção do público, entre um jornal ter anunciantes judeus e um destacado intelectual judeu ser apresentado pelo jornal. Só quando os anunciantes judeus pressionaram por uma cobertura pró Israel, o público (ou melhor, a parte diminuta realmente interessada no assunto) passou a enxergar os empresários judeus como um grupo político coeso.
Além disso, não podemos deixar de notar que o brasileiro é mais propenso a julgar as pessoas de modo individual que têm preconceitos étnico-raciais. Assim como Pelé é Pelé antes de ser um negro, Sílvio Santos é Sílvio Santos antes de ser um judeu – com a diferença de que todo fã de Pelé sabe que ele é negro, mas nem todo fã de Sílvio Santos sabe que ele é judeu. Seu pioneirismo na venda de carnês de crédito e seu bordão “Quem quer dinheiro?” (repetido enquanto joga dinheiro para a plateia feminina) poderia fazer dele, em outro país, uma caricatura antissemita do judeu materialista, mas no Brasil todos gostam de Sílvio Santos (exceto as feministas, que também não gostam de ninguém, nem de Pelé).
Elites ambíguas quanto ao comunismo
Conforme detalhado por Finkelstein em A Indústria do Holocausto, a clareza entre ser um imigrante judeu e ser um comunista foi grande o bastante para incomodar a elite judaica veterana nos EUA. As interrogações entre essa elite e os imigrantes comunistas foram conduzidas no liberado apoio da primeira ao macartismo, bem como na intensa e polarizada briga entre os asquenazitas.
No Brasil, a coisa foi muitíssimo diferente. Primeiro, porque não havia elites judaicas veteranas (nosso país foi fundado pela Contrarreforma), nem vieram tantos judeus asquenazitas para cá. Depois, mesmo que porventura imigraram muitíssimos asquenazitas comunistas, que mais chamaram atenção para o comunismo no Brasil foi o Exército, com a Intentona Comunista de 1935. Se o brasileiro, no auge do anticomunismo (que foi no Estado Novo, de 1937 a 1945) , formasse um estereótipo do comunista, ele seria um militar de baixa patente. A coisa poderia continuar assim até 1964, quando os militares fariam um expurgo dentro do Exército.
Também é interessante observar que comunistas e integralistas trocaram de lugar social no Brasil. Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas perseguiu ao mesmo tempo os integralistas e os comunistas. Se estes estavam no Exército, os integralistas estavam na Igreja Católica, nas agremiações estudantis e na intelectualidade. Já no período militar (1964 – 1985), o Exército, devidamente expurgado, perseguia os comunistas que agora faziam parte da Igreja Católica, nas agremiações estudantis e na intelectualidade. Resulta, portanto, que as elites brasileiras são ambíguas em relação ao comunismo, de modo que não teriam por que estigmatizar de uma maneira muito profunda ou rigorosa o judeu como comunista. Outro símbolo dessa ambiguidade é o próprio Getúlio Vargas, que, de ditador algoz dos comunistas no Estado Novo, passou, na democracia, a aliado deles, dividindo palanque com Prestes.
Mesmo que os judeus tenham a propensão de manter certa unidade cultural na diáspora, o Brasil dá liberdade de serem indivíduos avulsos, exercendo uma pressão grupal sobre o judeu. Além disso, os clichês macartistas, que geraram tanta politização intra-judaica nos Estados Unidos, não fizeram por que mirar os judeus no Brasil, seja por haver comunistas gentios o bastante, seja por o anticomunismo ter pouca força em nossa história.
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