Quem são os membros da Asfav, criado por familiares de presos golpistas com apoio de parlamentares bolsonaristas
Por Texto: Gabriel Máximo | Edição: Thiago Domenici
Há um ano, em 8 de janeiro de 2023, pessoas contrárias à posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente da República e inconformadas com a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais de 2022 invadiram e depredaram o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto.
A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foi tomada por golpistas que estavam acampados havia dias em frente ao Quartel-General do Exército, onde faixas pediam “intervenção militar” e “socorro às Forças Armadas”. Sob a letra da Lei 14.197, de 2021, instigar militares contra as instituições democráticas é crime.
Os registros audiovisuais do momento, muitos gravados pelos próprios extremistas e divulgados em tempo real em suas redes sociais, serviram de prova contra eles mesmos. Houve confronto e violência generalizada. Com a intervenção das forças de segurança do Distrito Federal, centenas de prisões foram feitas naquele mesmo dia e outras em 9 de janeiro, no acampamento montado em frente ao QG do Exército.
Desde então, os presos foram tornados réus pelo STF em ações movidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), e 40 já foram condenados por crimes como associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. Das mais de 2.000 pessoas detidas, 66 continuam presas.
No STF, existe a discussão se quem for condenado pelo 8 de janeiro deve ser mantido em celas separadas, mas a Procuradoria Geral da República se manifestou nos últimos dias para que eles permaneçam onde estão até o trânsito em julgado.
Quem está preso tem direito a duas horas de banho de sol por dia, e quatro refeições, além de poder receber visitas de advogados, defensores públicos e, a cada duas semanas, por duas horas, conversar com familiares previamente cadastrados.
Em 18 de abril de 2023, em frente ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), um grupo de advogados e familiares dos presos realizou uma primeira manifestação. Em uma carta aberta, eles pediam a liberdade dessas pessoas, ainda que por meio de medidas cautelares. “Não estamos pedindo a impunidade, mas que cada um responda pelo seu ato individual, são pessoas sem antecedentes criminais, provedores principais das famílias”, diz trecho do documento.
Sem ter a carta recebida pela OAB, o grupo resolveu que era o momento de dar mais um passo. Assim, em 28 de abril de 2023, foi criada a Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de Janeiro (Asfav), com sede em Brasília. Segundo a presidente da entidade, Gabriela Ritter, a associação surgiu para “dar voz” às famílias. “Estamos aqui para dizer que não se tem como condenar essas pessoas por golpe de Estado, ou por abolição violenta do Estado Democrático de Direito ou como associação criminosa armada. As pessoas nem se conheciam. As pessoas não sabiam quem era quem”, afirmou em entrevista à Agência Pública.
Por que isso importa?
- Os ataques golpistas de 8 de janeiro, que completam um ano, geraram uma série de desdobramentos, como prisões, operações da Polícia Federal e a criação de duas CPIs
- Mais de 2.000 pessoas foram detidas, 66 seguem presas e mais de 40 foram condenadas — 39 deles em outros estados além do Distrito Federal, como Santa Catarina e Minas Gerais
Ela diz não defender a impunidade e reconhece que houve atos de vandalismo e invasão a prédios públicos, mas questiona a imputação dos crimes relacionados ao Estado Democrático de Direito. “Se teve uma tentativa [de golpe de Estado], se teve alguma coisa que a sociedade não está sabendo, aí as pessoas realmente têm que ser punidas, quem de fato cometeu algum crime nesse sentido. Agora, dizer que manifestantes, com uma garrafinha de água, com a bandeira do Brasil, com uma bíblia, que adentraram eventualmente a um prédio público, queriam tomar o poder, ou que tomaram o poder, isso é absurdo. Porque sentar, por exemplo, na cadeira do presidente não quer dizer que a pessoa se torna presidente do Brasil. Aquilo é um símbolo. A gente tem a sensação de estar vivendo um filme, porque é uma aberração jurídica”, argumenta Gabriela.
A visão de Gabriela e da Asfav tem apelo no grupo bolsonarista, tendência política com a qual 25% da população se identificam, ante 30% que se afirmam petistas, segundo pesquisa Datafolha divulgada em 20 de dezembro. O levantamento mostra que a polarização no país segue no mesmo patamar registrado em dezembro de 2022. A advogada, que é filha de Miguel Fernando Ritter, um dos presos pelos atos, defende que essas pessoas são “vítimas em função de como todo o processo caminhou, de todas as nulidades, de todas as violações de direitos humanos, de prerrogativas dos advogados”.
A Asfav critica a forma como o processo vem sendo conduzido no STF, especialmente pelo relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, a quem acusam de excessos, como manter presas pessoas que já tem parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) favorável à soltura.
Para ingressar na associação é necessário ser familiar de um preso, maior de 18 anos e ter “idoneidade moral e reputação ilibada”, de acordo com o estatuto da entidade, ao qual a Pública teve acesso. Segundo o documento, também é necessário que a pessoa preencha um formulário on-line entregue pela secretaria da entidade, que será submetido à análise da diretoria. O estatuto destaca que “nenhum associado será remunerado pelo exercício ou preenchimento de qualquer cargo ou função na Diretoria ou no Conselho Fiscal”.
Gabriela Ritter afirma que, atualmente, entre associados e voluntários são mais de 400 pessoas. Após a análise do requerimento de associação, os integrantes podem receber assistência jurídica, social, psicológica ou financeira.
Toda a diretoria é formada por familiares dos presos e é composta pelo presidente, primeiro e segundo secretários e tesoureiros. O corpo diretivo é eleito por uma assembleia geral, órgão máximo de deliberação da Asfav, para um mandato de quatro anos. Da mesma forma é escolhido o conselho fiscal, do qual fazem partes três membros da associação, dos quais um deverá ter “formação técnica adequada às atividades desempenhadas pelo órgão”.
A associação afirma que se mantém financeiramente através de mensalidades dos associados, que, segundo a presidente, são facultativas, além de doações. As demonstrações financeiras são apresentadas em reuniões da entidade e divulgadas em suas redes sociais. De acordo com a última prestação de contas disponível no canal da associação no YouTube, até 17 de agosto, a Asfav havia recebido R$ 3.588 em doações. Os recursos teriam sido gastos com passagens, combustível, contas de energia, vestuário e alimentação dos associados.
Atuação em Brasília
Na tentativa de denunciar o que consideram prisões políticas, representantes da associação têm se movimentado pelos gabinetes do Congresso Nacional e do STF. Com a ajuda de parlamentares conservadores ligados ao bolsonarismo, a Asfav já conseguiu a realização de algumas audiências públicas na Câmara e no Senado para discutir a situação dos presos. Para isso, contam com o apoio de parlamentares conservadores como Nikolas Ferreira (PL-MG), Marcel van Hattem (Novo-RS) e Bia Kicis (PL-DF), além dos senadores Magno Malta (PL-ES) e Eduardo Girão (Novo-CE).
Esse apoio não é recente. Como mostrou a Pública, em maio ao menos 33 parlamentares visitaram presos no Complexo da Papuda e Colmeia (presídio feminino), em Brasília. Em uma das visitas, Malta chegou a dizer que eles eram “uma família”, enquanto Girão repetiu a narrativa bolsonarista de que o Brasil estava sob uma “guerra espiritual”.
“São aquelas pessoas que você vai na Câmara, você sabe que pode bater na porta do gabinete deles, que tanto eles quanto a assessoria vai estar disponível para nos atender”, afirma Carolina Siebra, uma das advogadas da Asfav. Ela garante que a única preocupação dos parlamentares que auxiliam politicamente a associação é garantir que os advogados tenham provas de que os presos não tenham “feito nada”. Siebra nega qualquer aproximação do grupo com a família Bolsonaro, como o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
“A gente não busca contato com eles, porque a nossa causa não é essa. Nem eles conosco. A gente prefere que seja assim. Essas pessoas têm pautas bem claras. São pessoas cristãs, que defendem a família, que são contra o aborto, contra a liberação de drogas. E isso daí não significa que eles estavam pelo Bolsonaro”, argumenta.
Além do Congresso, os advogados da Asfav têm ido com frequência ao STF. Eles visitam a corte para relatar as condições dos presos que ainda estão encarcerados na tentativa de libertá-los, como mostra um vídeo publicado no perfil da associação no Instagram em 13 de dezembro em que Gabriela Ritter e o advogado Ezequiel Silveira afirmam que estiveram em todos os gabinetes dos ministros entregando ofícios sobre a situação dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Destacam, no entanto, que não teriam sido recebidos no gabinete do ministro Alexandre de Moraes.
Em nota enviada à Pública, a assessoria do STF declarou que “não foi negado a ninguém o acesso ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes” e disse que a segurança “tem orientação para entrar em contato com o gabinete informando o nome do advogado que deseja entregar os memoriais [alegações escritas]”. O texto afirma que a entrada é autorizada para entrega do documento e que audiências com o magistrado precisam ser solicitadas por e-mail.
“Justiça por Clezão”
As atividades da Asfav têm sido intensificadas após a morte de Cleriston Cunha, 46 anos, preso pelo 8 de janeiro que faleceu na Papuda após ter passado mal, em 20 de novembro do ano passado. Em 1º de setembro, a PGR já havia emitido parecer favorável à soltura dele, mas o caso não chegou a ser analisado por Moraes. A médica Tania Oliveira chegou a pedir em laudo médico de 27 de fevereiro a “agilidade no processo legal do paciente” em função do risco de morte por imunossupressão e infecções.
O caso de Clezão, como era apelidado, foi tema de audiência pública na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados em 6 de dezembro, que teve a presença da viúva, Edjane Cunha, e das filhas do casal.
“Se Clezão tivesse direito à ampla defesa e ao contraditório, a gente não estava aqui sofrendo com a perda dele. Porque perder o Clezão é como se tivesse perdido alguém da nossa família também. Não tem como a gente deixar de sentir. Não tem como a gente deixar a indignação para lá. Pelo Clezão, pelas filhas dele, pela esposa dele, a gente vai aonde a gente precisar ir. Se a gente já iria antes, agora é que a gente vai mesmo”, disse Carolina Siebra em seu discurso. A advogada da Asfav cobrou a responsabilização de Moraes por omissão e afirmou que casos parecidos podem voltar a acontecer se os processos não forem analisados.
Um dos parlamentares presentes, o senador Eduardo Girão pediu desculpas à família de Cleriston e afirmou que o Senado era “corresponsável por essa tragédia”. Já o senador Magno Malta chegou a comparar a morte do preso pelo 8 de janeiro com a do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do Exército durante a ditadura militar (1964-1985). A audiência pública, com alguns discursos bastante inflamados, serviu de ato preparatório para uma manifestação que ocorreria dias depois na Esplanada dos Ministérios em Brasília no dia 10 de dezembro, convocada nas redes sociais.
Mesmo debaixo do sol quente, manifestantes vestidos de verde e amarelo foram ao local dos crimes de 8 de janeiro. Dessa vez, pediam liberdade para os presos em função dos ataques. Além de “justiça para Clezão”, cobravam a responsabilização e o impeachment do ministro Alexandre de Moraes e o veto do Senado à indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, que foi confirmada na sabatina realizada dias depois no Senado Federal.
Apesar de alguns afastarem o rótulo de “bolsonaristas”, os manifestantes gritaram em coro “volta Bolsonaro” quando o senador Jorge Seif (PL-SC) afirmou que o ex-presidente voltaria ao Palácio do Planalto em 2027 – atualmente, o ex-chefe do Executivo foi tornado inelegível por 8 anos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Além do parlamentar catarinense, o carro de som contou com muitos políticos conservadores, como os deputados Gustavo Gayer (PL-GO) e André Fernandes (PL-CE), que se revezavam nos discursos belicosos.
Representantes da Asfav também estavam no carro de som, mas a fala em nome da associação coube ao advogado Ezequiel Silveira. Ele afirmou que “as ruas estavam com saudade” dos manifestantes conservadores e que as prisões de 8 de janeiro foram para tentar intimidá-los. “Nós não podemos permitir que a justiça se travista de vingança e que pessoas inocentes paguem pelos erros daqueles que cometeram algum crime. Pessoas inocentes morram na prisão, como Clezão morreu. […] O sangue do Clezão será a fagulha que vai reacender a chama da liberdade na nossa nação”, declarou.
Ontem, 7 de janeiro, a Asfav realizou em suas redes o que chamou de “Super live da verdade”, com a participação de convidados e alguns parlamentares citados ao longo desta reportagem.
Fonte: Agência Pública