A professora Norma Valencio explica que a catástrofe é fruto de desigualdades e falta de políticas públicas adequadas
Entre a madrugada de sábado (18) e a noite de domingo (19), choveu em São Sebastião e Bertioga, no litoral Norte de São Paulo, mais do que em janeiro e fevereiro de 2022, o que já tem sido classificado por meteorologistas como um “evento climático extremo”. De fato, a quantidade de água que despencou do céu na região foi atípica, mas não explica sozinha a tragédia que se sucedeu: até agora, são 54 mortos, mais de 4 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas e dezenas de desaparecidos.
Segundo Norma Valencio, professora das universidades de Campinas (Unicamp) e Federal de São Carlos (Ufscar) e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (Neped) da Ufscar, catástrofes como os que acometem o litoral norte paulista são resultado de “estruturas institucionais e dinâmicas socioespaciais” que fazem com que grupos sociais em processo de vulnerabilização não tenham “como se defender desses fenômenos extremos”. Em outras palavras, as maiores vítimas são os mais pobres, em grande parte negros, obrigados a viver em áreas inseguras e mais vulneráveis a enchentes e deslizamentos de terra, como as encostas da Serra do Mar.
Por isso, Valencio destaca a necessidade de questionarmos o termo “desastre natural”. Como um dos fatores fundamentais para a tragédia no litoral de São Paulo, mas também em outros casos, ela cita a questão do mercado de terras. “Podemos intuir que os terrenos intrinsecamente, geomorfologicamente mais seguros obviamente foram os terrenos dos quais as camadas mais abastadas da sociedade se apropriaram. Aí falam: vá morar numa área segura.
Bom, a área segura é a área dos ricos”, assinala. “O que resta para os pobres é, na maioria das vezes, a ocupação irregular com um mercado de terras informal, paralelo, em áreas não apenas intrinsecamente inseguras, mas onde os infrassistemas públicos que mencionei são inexistentes, insuficientes ou inadequados.”.
Sob essa perspectiva, a professora critica algumas das medidas tomadas pelas autoridades na tentativa de conter os estragos do desastre, como a decisão da Justiça de Caraguatatuba, na última quarta-feira (22), autorizando o governo estadual e o município de São Sebastião a retirarem de suas casas pessoas que ainda vivem em áreas de risco e levá-las a abrigos. “A vida social é mais do que tirar [as pessoas] de uma casa condenada pela Defesa Civil e levá-las para um abrigo. Isso tem que vir associado a uma política pública de habitação segura e digna. É sempre essa segunda parte da solução com a qual não vejo o Judiciário, inclusive os Ministérios Públicos, se preocupando”, afirma. “Senão é só tirar as pessoas de um lugar e levá-las a uma situação anômica, um abrigo temporário, pressionar através das abordagens de assistência social desumanizantes, pressionar para que se agreguem à casa de parentes ou de amigos e vira problema do outro, até que elas desapareçam de vista. Elas vão ‘desastrar’ em outro lugar, em outra ocasião, abandonadas.”
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.
Qual é a definição de desastre?
Dentro da perspectiva das Ciências Humanas e Sociais, entendemos o desastre como o conjunto de sofrimento social atrelado a um certo evento crítico, seja de que natureza for. O desastre, na verdade, é o processo de dor em razão de perdas e danos inúmeros, ou seja, com o destroçamento multifatorial da vida cotidiana ou do modo de vida da população afetada por um evento crítico. Se fôssemos, por exemplo, pensar no que aconteceu agora no litoral norte de São Paulo, diríamos que houve um desastre associado às chuvas. É muito importante, tendo essa perspectiva do campo crítico das Ciências Humanas e Sociais, dizermos “associado a” um evento crítico, seja ele de natureza meteorológica, geológica ou técnica – como em relação ao colapso de barragens. Está associado a um evento, mas o desastre em si é o sofrimento social de natureza coletiva e multifatorial que destroça o modo e as condições de vida de um determinado grupo social.
Por que é inadequado o termo “desastre natural”?
Por exemplo, quando se diz que houve um desastre natural no litoral norte de São Paulo, se dá um crédito extremado ao fenômeno meteorológico atípico e extremo ocorrido naquele local. Isso acaba por secundarizar todas as estruturas institucionais e as dinâmicas socioespaciais relativas a esse fenômeno e que causam não só o desastre, mas a sua natureza catastrófica. Faço parte de uma corrente no campo crítico de desnaturalização dos desastres, dentro da Sociologia dos Desastres, exatamente para fazer essa disfunção. Não estou dizendo que não existiram eventos críticos relevantes relacionados a fenômenos meteorológicos e geológicos. Mas o importante é que isso aconteceu dentro de uma racionalidade de produção social do espaço dada numa outra cronologia, um outro tempo social, e por conta da lógica operativa de produção social de espaço é que havia certos grupos sociais que estavam em processo de vulnerabilização para não ter como se defender desses fenômenos extremos. Ao dissociar o qualificativo natural do que é efetivamente o coração do desastre é que a gente pode começar a fazer análises mais acuradas a respeito dos fenômenos sociais que levam contingentes cada vez maiores a serem, de maneira multifatorial, prejudicados fortemente nesse contexto.
Em outras palavras, os desastres não são apenas determinados por eventos críticos, como as chuvas atípicas que caíram no litoral norte de São Paulo, mas são socialmente construídos?
É exatamente isso. Nos determos na construção social do desastre é talvez aquilo que vai explicar mais fortemente porque não temos apenas um número crescente de ocorrências, na forma de situação de emergência ou de estado de calamidade pública, mas, inclusive, uma intensificação dessas ocorrências em número e intensidade. Mas qual é esse processo social? A gente fala pouco disso porque parece que estamos interessados mais fortemente na quantidade de milímetros que precipitou, por exemplo, que, como eu digo, não é desimportante, mas não dá conta de explicar o desastre.
Quais fatores de vulnerabilidade estão presentes, normalmente, nos territórios atingidos e que aumentam as proporções do desastre?
No Neped, temos como muito precioso o estado precário de um sujeito, seja ele individual ou coletivo. Temos como muito cara a definição do professor Henri Acselrad, da UFRJ, de processo de vulnerabilização. Ele diz para deixarmos de olhar para aquilo que é o estado do sujeito, que é vulnerável, pois isso suscita argumentos de culpabilização – é vulnerável porque quis; mora no morro, sem condições de segurança, porque quis; e o sujeito é culpabilizado, muitas vezes, na sua própria morte, perda da casa etc.
Se a gente trocar isso pela chave de leitura do processo de vulnerabilização, entramos no campo das relações de poder, ou seja, dos processos sociais, políticos e econômicos que subjugam uma certa parte da sociedade a ter, sem opção, uma vida precária. Vou dar um exemplo em relação a esses desastres recentes, inclusive esse a que a gente está assistindo. Há um bairro de trabalhadores empobrecidos onde tem um grande número de fatalidades, e [a primeira coisa que se faz] é apontar o dedo e dizer que a culpa é deles, que vão morar nas “áreas de risco”. Coisa que dificilmente a gente vê na cobertura midiática é entender qual é o processo de produção social do espaço para uma outra escala, por exemplo, a escala da dinâmica do mercado de terras e da especulação imobiliária.
Se formos pensar do ponto de vista do mercado de terras, por exemplo, na região do litoral norte do estado de São Paulo, podemos intuir que os terrenos intrinsecamente, geomorfologicamente mais seguros obviamente foram os terrenos dos quais as camadas mais abastadas da sociedade se apropriaram. Aí falam: vá morar numa área segura. Bom, a área segura é a área dos ricos. O mercado de terras no Brasil, de maneira geral, nos núcleos urbanos e em cidades turísticas em particular, além de em regiões metropolitanas, é muito dinâmico e sagaz. Como grandes lobbies que são, se articulam com o poder público em vários níveis para que as infraestruturas essenciais possam chegar primeiro nessas áreas e, por isso, valorizá-las ainda mais. Você vê que as curvas de preço tornam aqueles terrenos ainda mais disponíveis apenas para os mais ricos, e ali é onde chegam primeiro a estrada, a telecomunicação, a água e o esgoto, a iluminação. Tudo vai chegar primeiro ali. É uma junção de condições naturais e territoriais a uma condição de poder econômico que se alinha ao poder político para priorizar políticas públicas que tornem o terreno mais seguro ali.
O que resta para os pobres é, na maioria das vezes, a ocupação irregular com um mercado de terras informal, paralelo, em áreas não apenas intrinsecamente inseguras, mas onde os infrassistemas públicos que mencionei são inexistentes, insuficientes ou inadequados. É isso que, ao se somar às relações de trabalho e renda, faz com que as condições de habitar sejam também suscetíveis, do ponto de vista do material construtivo que se usa para erguer casas, sem apoio técnico, em terrenos inseguros, onde a infraestrutura é precária. Olha quantos componentes eu citei além de dizer que “ele escolheu morar na área de risco”. Isso não é escolha, mas a falta dela.
Na última quarta-feira, a Justiça atendeu ao pedido do estado de São Paulo, que foi autorizado, junto à prefeitura de São Sebastião, a retirar as famílias que ainda estão em áreas de risco em São Sebastião e levá-las para abrigos. Como você analisa essa medida?
Isso significa que as autoridades, no caso a Defesa Civil, muitas vezes com suporte da Polícia Militar – e no caso de São Paulo, quando se fala de Defesa Civil, estamos falando de policiais militares em função de Defesa Civil – podem tirar as pessoas [de suas casas] de maneira absolutamente arbitrária, independente da vontade delas de sair. Fico muito preocupada com essa visão dos operadores do Direito porque parece que o que os move a uma decisão dessa é que ela será executada por Defesas Civis para preservar a vida. Só que a vida social é mais do que tirar [as pessoas] de uma casa condenada pela Defesa Civil e levá-las para um abrigo. Isso tem que vir associado a uma política pública de habitação segura e digna. É sempre essa segunda parte da solução com a qual não vejo o Judiciário, inclusive os Ministérios Públicos, se preocupando.
Cadê a garantia de que, uma vez que a população é retirada à revelia das suas precárias moradias, estão asseguradas para ela moradias em áreas seguras e dignas? Porque senão é só tirar as pessoas de um lugar e levá-las a uma situação anômica, um abrigo temporário, pressionar através das abordagens de assistência social desumanizantes, pressionar para que se agreguem à casa de parentes ou de amigos e vira problema do outro, até que elas desapareçam de vista. Elas vão “desastrar” em outro lugar, em outra ocasião, abandonadas. Fico muito apreensiva com a celeridade de se preocupar com o direito à vida com pouca reflexão sobre as políticas públicas que garantem dignidade e cidadania a essa vida humana. A segunda questão é o uso do verbo remover – já estou há duas décadas escrevendo sobre isso. Quando se usa “remover” para falar da minha relação humana com o outro, eu estou desumanizando e coisificando esse outro.
As autoridades falam muito em “retorno à normalidade” no litoral norte de São Paulo, com o desbloqueio das estradas, por exemplo. Para as vítimas mais afetadas, é possível esse retorno?
A visão de retorno à normalidade vem muito da racionalidade militar na qual trabalham as Defesas Civis do Brasil inteiro. A ideia de que vamos fazer ações intensivas e espetaculares de resposta e tudo volta a ser como antes. Falta aí um componente essencial de compreensão da perspectiva das Ciências Humanas e Sociais, que é a da vida vivida: a gente nunca vai pra trás, a gente só vai para frente, temos uma vida historicamente produzida. Não existe um retorno à normalidade porque tudo aquilo que já foi e que passou por uma severa perturbação denominada desastre, sobretudo os catastróficos, não volta a ser como antes. Tudo é sempre recomeço, mas de uma base diferente: aquela casa não é mais a mesma; os objetos de valor material, simbólico e sentimentais não são mais os mesmos; a estrutura familiar não é mais a mesma, do ponto de vista dos mortos e feridos; as condições de saúde não são mais as mesmas, tendo em conta as dimensões de danos psicossociais também; os meios de vida não são mais os mesmos, porque se perderam espaços de trabalho, estoques etc. Há muito populismo quando se fala “estamos todas as autoridades, nos três níveis de poder, muito empenhadas em retornar à normalidade”, sendo que, no plano concreto, a retomada da normalidade das pessoas significaria sair da lógica do processo de vulnerabilização e nem de longe estou vendo essa lógica sendo rechaçada, pelo contrário, está sendo reafirmada nessa figuração do herói, da vítima que aparece diante das câmeras, enquanto as câmeras ainda estão lá. Porque quando não estão, toda essa atenção e cuidado acabam também. E a gente tem mais performance midiática do que uma performance de longa duração para mudar o modelo de desenvolvimento, incluir uma lógica operativa no mercado imobiliário, que é o que está por de trás das chamadas áreas de risco.
Os recomeços que você citou também são fortemente marcados por desigualdades sociais, certo?
Isso a gente já tinha visto, por exemplo, em relação ao desastre que aconteceu em 2011 na região serrana do Rio de Janeiro. Parece que as propriedades das pessoas mais abastadas foram afetadas também. Mas as pessoas mais abastadas têm outra relação com o mercado, que lhes permite não apenas ter um provimento de maior massa de renda diretamente, como também estão mais articuladas. São mais beneficiadas junto ao poder público e estão enredadas pelo sistema securitário, de tal forma que quando perdem alguma coisa, o sistema securitário cobre. É uma perda apenas circunstancial se você está amparado por essa rede. Já os que estão em processo de empobrecimento não fazem parte dessas redes, não estão bem situados na estrutura de poder político, têm poucos recursos de voz, não têm recursos próprios para recomeçar a vida do zero. Casas que, precárias que fossem, nas quais levou-se anos e anos e anos para se fazer melhorias homeopáticas, de uma hora para outra precisam ser reerguidas e não há recursos de financiamentos disponíveis para isso, nem políticas públicas de soluções de curto prazo. É um recomeçar sem os recursos materiais, financeiros e com a acumulação da experiência de sofrimento. Um recomeçar que degrada muito a condição humana.
De que maneira o debate sobre racismo ambiental se relaciona ao tema dos desastres?
Sem dúvida. A ideia do racismo ambiental, segundo o sociólogo norte-americano Robert Bullard, é definida pelo fato de que a produção social do espaço daqueles que estão em processo de vulnerabilização só é permitida de maneira contígua a locais deteriorados. Em seus estudos nos Estados Unidos, ele constatou que próximo aos chamados lixões, aterros sanitários, lugares muito suscetíveis à contaminação ambiental, inclusive a vetores de doenças, não por coincidência, eram as áreas em que os empobrecidos tinham, entre aspas, um direito de estar. E eles tinham uma definição etnorracial bastante evidente: eram negros.
No caso do Brasil, num certo sentido, isso é muito parecido, sobretudo porque, quando falamos em prevenção aos desastres, muito se diz que os recursos para tal diminuíram significativamente nos últimos anos e, mesmo assim, foram mal ou pouco utilizados. Eu diria que o problema não é nem uma coisa, nem a outra. A pergunta que se faz é: qual tipo de mentalidade e quais atores estavam em posição de poder para conduzir que tipo de política pública que evitasse os desastres? São os mesmos grupos técnicos que trabalham numa lógica corporativa. Eles às vezes só se revezam, deixam de estar na esfera nacional, viram estadual, e da estadual vão para a municipal. E são mentalidades, por exemplo, em termos de prevenção, que conseguiram deixar completamente ao relento qualquer estratégia de políticas públicas de ligeiras soluções habitacionais seguras para as comunidades que vivem em terrenos mais suscetíveis. A outra preocupação é que mesmo quando falamos dessa solução habitacional alternativa a quem está em áreas suscetíveis, temos que nos perguntar como a população que será atendida participa do processo de construção dessas políticas habitacionais. Que recursos de voz ela tem? Como os meios técnicos envolvidos – engenheiros, arquitetos, etc – produzem soluções equivalentes às demandas culturais dessas populações, à tessitura dos seus núcleos familiares? E quando eu digo tessitura é em relação à composição da família. Há idosos e jovens morando sozinhos, casais sem filhos, famílias nucleares, pai, mãe, filhos pequenos que moram com seus avós na mesma unidade habitacional. O layout da habitação deve ser completamente diferente para cada tipo de família, e no Brasil há famílias muito diversas.
A ciência tem concluído que as mudanças climáticas aumentam a frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, o que deve aumentar a possibilidade de ocorrência de desastres associados a eles. Diante desse cenário, que medidas deveriam ser prioridade para mitigar esse risco?
Levando em consideração estudos sobre as mudanças climáticas, a começar pelos próprios relatórios do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] apontando para o aumento na ocorrência de eventos severos e extremos ao redor ao redor do mundo, eu diria que temos algumas preocupações importantes. A primeira delas é com a grade curricular dos cursos dos campos disciplinares: do ponto de vista da sua atuação, seja científica ou profissional, vão ter que começar a trabalhar com problemas complexos que exigem soluções transdisciplinares. Um climatologista consegue, através dos seus vários modelos, prognosticar, baseado no histórico dos últimos cem anos, por exemplo, que haverá um aumento na intensidade de eventos extremos de determinada natureza nesse bioma ou naquele, mas é importante se articular com profissionais dos diversos campos em que esses biomas pareçam suscetíveis. Não são estudos isolados, deveriam ser completamente articulados cada um na sua competência, e não vejo muito isso. Acho que a coisa mais estratégica é em que medida na grade curricular dos diferentes campos disciplinares envolvidos nos estudos das mudanças climáticas há uma abertura para criar elos com competências diferentes para fazermos estudos juntos. É preciso pensar nessas formas de ocupação injustas, desiguais, desumanas, com políticas públicas ineficientes, e adicionar o problema dos eventos extremos para preparar uma nova geração para trabalhar junto e em situações extremas.
Em segundo lugar, vejo muito populismo de gestores, sejam eles de esquerda ou de direita, para fazer alarde em torno de medidas que do meu ponto de vista são pífias no médio e longo prazo. Por exemplo, liberar FGTS para os desalojados e desabrigados [o governo federal autorizou o saque para moradores de Bertioga, Caraguatatuba, Guarujá, Ilha Bela, São Sebastião e Ubatuba]. Mas estamos falando do mundo de precarização do trabalho em que metade da população economicamente ativa está em trabalho precarizado, informal. Então vamos falar da verdade, do mercado de trabalho verdadeiro que existe no Brasil hoje? Como a população de fato participa da formulação, acompanhamento, condução de soluções habitacionais e que prazo de controle social vai ser dado a elas nessas medidas? Quais são todas as outras políticas públicas envolvidas, sobretudo no campo do acolhimento psicossocial, da dimensão da assistência social, da saúde, que vão ser dadas a essas pessoas. A gente não vê as autoridades indo na frente das câmeras e falando sobre essas discussões. Em que medida a gente não vai apenas recuperar pontes e estradas, mas vai poder de alguma forma, lidar com o refazimento dessas infraestruturas a partir das lições aprendidas para que as novas obras aguentem o impacto de eventos extremos. Eu quero ouvir sobre isso, não quero apenas ouvir sobre o trator que vai liberar a Rio-Santos. Quero saber qual é a outra formulação de infraestrutura viária, de telecomunicações, qual é a grande inovação que seja capaz de suportar os eventos extremos que virão.
Você está falando, em outras palavras, sobre a necessidade de se criar políticas públicas de adaptação às mudanças climáticas. Qual o papel delas para diminuir a chance de ocorrerem novos desastres ligados a eventos extremos?
Há quinze anos, na África já se falava em adaptação, mas no Brasil era proibido falar sobre. As autoridades daqui – estou falando de governos ditos democráticos, de esquerda – falavam em mitigação das mudanças climáticas, não podia falar de adaptação. Havia aí uma diferença não só de termo, porque se as autoridades governamentais do Brasil assumissem que precisavam, em vez de mitigar, adaptar, isso significaria uma transformação muito profunda em processos de produção social do espaço, e isso implica ir na contramão de interesses das elites que produzem os seus espaços seguros em prol da continuidade de injustiças socioespaciais.
Quando finalmente no Brasil começou a se falar de adaptação, o uso deste conceito não foi seguido, desafortunadamente, de políticas públicas condizentes com a ideia da adaptação. Políticas que o memorável Florestan Fernandes dizia que são não apenas de mudança da sociedade, mas de transformação. Isso significa rever o processo de divisão do poder, de distribuição da riqueza, de equalização das políticas públicas do ponto de vista da justiça social. Mas isso efetivamente a gente não faz porque ainda se opta pela política populista das caridades homeopáticas, que não tiram a população do processo de vulnerabilização e de empobrecimento. Por exemplo, essas famílias que agora estão desamparadas, que perderam seus familiares, sua moradia, seus objetos de estima e de trabalho, em que medida vai se abrir para elas uma interlocução sociopolítica de adaptação, de participar de maneira resiliente e ativa da produção de políticas públicas para a sua dignidade humana, nos seus termos, e amparados pelas garantias institucionais. Isso é um pouco mais do que uma cesta básica ou a liberação de FGTS para trabalhadores uberizados.
Fonte: Agência Pública