Uma investigação de 46 integrantes do Movimento dos Policiais Antifascismo foi feita em março a pedido de promotor. Policiais identificados com o movimento constam do dossiê produzido na diretoria da Dint, no Ministério da Justiça.
Por Vasconcelo Quadros
Até ser demitido, na semana passada, do comando da Diretoria de Inteligência (Dint) da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em meio ao escândalo do dossiê sobre opositores do governo, o coronel do Exército Gilson Libório de Oliveira Mendes parecia o homem certo para o presidente Jair Bolsonaro “se manter informado”, como exigia na famigerada reunião de 22 de abril. Discreto, disciplinado, fiel, com experiência em ciências militares e vários cursos de inteligência agregados ao currículo, o coronel Libório era, antes de tudo, um sobrevivente da polarização política. Desde 2005, transitava com a desenvoltura de um camaleão entre a Controladoria-Geral da União (CGU), para onde foi levado pelo ex-ministro Jorge Hage para fortalecer um setor de inteligência destinado a rastrear dinheiro empregado em obras públicas, e o Ministério da Justiça, sempre ocupando cargos de relevo, como secretário executivo, o número dois da pasta, no governo Michel Temer. Não se esperavam problemas políticos da parte dele.
Por isso, pouca gente entendeu como ele se deixou pegar como responsável pelo dossiê antifascista produzido pela Dint com nomes, perfis e anexos contendo informações de 575 servidores federais e estaduais de segurança (agentes penitenciários, rodoviários, peritos, papiloscopistas e bombeiros), dos quais mais de 400 são policiais opositores de Bolsonaro signatários de manifestos antifascistas e quatro, acadêmicos especializados em segurança e direitos humanos: Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político, Luiz Eduardo Soares, também cientista político e antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança Pública do governo Lula, Ricardo Balestreri, ex-secretário do Ministério da Justiça, e Alex Agra Ramos, acadêmico da Universidade Federal da Bahia. A existência do dossiê foi revelada pelo jornalista Rubens Valente, colunista do Portal UOL.
Não se sabe se o coronel agiu por conta própria ou se a investigação foi encomendada, mas o fato é que a Dint tem atribuição idêntica a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), esta sim, pela lei, com prerrogativa institucional de produzir informações úteis às decisões do presidente da República e demais esferas do governo. É o que estabelece o Decreto 9.662, publicado no primeiro dia do governo Bolsonaro, com a assinatura também do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, criando a Seopi e, dentro desta, a Dint, com competência para gerir em nível nacional todo o serviço de informações “como agência central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública”, estrutura e atribuição que, em nenhum outro governo, nem mesmo durante o regime militar, pertenceu ao Ministério da Justiça, uma pasta com demandas complexas cujo papel principal sempre foi dar rumo institucional às ações de estado.
Foi com Moro no Ministério da Justiça que uma coordenadoria no governo Temer se transformou em secretaria – a Seopi – com atribuição de integrar ações contra o crime organizado; e um de seus tentáculos ganhou forma de diretoria de inteligência. Além de reestruturar o ministério, Moro levou para ele o estilo de inteligência da Lava Jato, que ainda vigora em Curitiba, e colocou para dirigir o órgão o delegado Rosalvo Franco, ex-superintendente da Polícia Federal no Paraná e um dos principais nomes da Lava Jato. O coronel Gilson Libório de Oliveira Mendes foi nomeado diretor da Dint no dia 25 de maio, em portaria assinada pelo ministro André Mendonça.
Egresso da caserna, o coronel é um daqueles militares que, com o fim da ditadura, enveredaram pelas ciências de investigação e passaram a estudar mecanismos de inteligência à luz das novas tecnologias da informação. Em 1982 fez mestrado em aplicação militar, formou-se também como oficial de infantaria pela Academia Militar de Agulhas Negras (Aman), mesma escola de Bolsonaro, e no mesmo ano se deslocou para a assessoria de comunicação do Exército, tornando-se chefe de gabinete do ministro do Exército. Em 1985 concluiu o aprendizado na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao) e, entre 1997 e 1995, especializou-se em política estratégica na Universidade de Brasília (UnB).
Na CGU, a partir de 2006, depois de um curso sobre prevenção de lavagem de dinheiro na Universidade de Alcalá, em Madri, assumiu o comando da Diretoria de Pesquisa e Informações Estratégicas, onde, destaca no currículo, “coleta, busca e tratamento de informações de natureza estratégica” com os novos recursos de tecnologia, unindo-se ao mutirão institucional que reunia ainda o Ministério Público Federal (MPF) e Receita Federal.
“É um sujeito fechado, não confrontava e nem partia para o embate. É um dos que tentou me derrubar quando percebi que produziam dossiê”, disse à Pública o delegado aposentado e ex-deputado estadual Romeu Tuma Jr., referindo-se ao período em que conviveu com Gilson Libório, então na CGU, na Secretaria Nacional da Justiça, da qual foi titular entre 2007 e 2010. Libório havia sido destacado para integrar a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), órgão criado em 2003 e vinculado à Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) que funciona como um fórum do qual se originaram as diretrizes que levariam às operações de impacto de combate a corrupção, entre elas a Lava Jato. O juiz Sergio Moro participava dos debates na Enccla. Na sombra, o nome de Libório também está ligado aos bastidores de dezenas de operações contra a corrupção durante o governo Lula.
Tuma conta que Gilson Libório havia atuado no grupo original do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), criado dois anos antes, e fazia toda a articulação com agências americanas sobre cooperação internacional sem prestar contas à autoridade central, no caso, a SNJ. “Faziam as coisas em segredo, trabalhavam só para seus próprios membros e não queriam se submeter. Quando percebi que havia instrumentalização política, decidi apertar. Sofri grande resistência”, diz o delegado, que chegou a citar o nome do militar num dos trechos do livro Assassinato de reputações – um crime de Estado, de 2013, em que se coloca como um dos alvos do governo petista.
Segundo Tuma Jr., Libório fazia parte do grupo que vazou informações sobre o uso de cartões corporativos pela então primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva.
“A espionagem está no DNA desses caras. O que está acontecendo agora, vaticinei lá atrás: divulgam informações que ‘assassinam’ reputação. Depois não tem inquérito, não tem processo legal. Para meu espanto, continuam operando”, diz Tuma Jr., que se coloca como uma das vítimas dos dossiês. Em 2010 ele perdeu o cargo depois que vazou, segundo ele através do grupo de Libório, informações sobre sua relação de amizade com um dos maiores contrabandistas do país, o chinês Li Kwok Kwen, conhecido como Paulo Li. O delegado chegou a ser acusado de usar o prestígio para facilitar a vida do contrabandista, mas nega e diz que nada se comprovou contra ele.
“O mais grave é que o Ministério da Justiça não é um local adequado para fazer inteligência. Agora é preciso ver com clareza se esse dossiê é obra de algum aloprado ou orientação de governo”, diz Tuma Jr. Segundo ele, os problemas desse tipo de espionagem “oficial” são a precariedade das informações, a forma de difusão e o uso político. “Relatório de inteligência não pode ser usado para perseguir adversários políticos. Ele não dá direito à defesa e não pode ser usado em inquérito. É como escuta telefônica: o agente ouve, interpreta e deduz, sem que isso passe por auditoria ou correição. Só serve para informar o superior, assessorar uma decisão, alertar os governos sobre possíveis focos de problemas e não para neutralizar movimentos.”
Erro crasso
A produção do dossiê antifascista, onde estão incluídos pelo menos 35 policiais federais, cometeu um erro crasso ao considerá-los como inimigos políticos e ideológicos do governo, como se críticas ao regime fascista fosse um “privilégio” da esquerda, explica o agente Flávio Werneck, presidente do Sindicato da Polícia Federal de Brasília e diretor jurídico da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), entidade que representa perto de 13 mil policiais. “Eu poderia estar na lista. Sou antifascista e só não assinei o manifesto pela minha condição de dirigente sindical. Todo presidente da República que respeitar a Constituição deveria ser antifascista”, diz.
Segundo ele, os policiais tratados como adversários do governo são apenas críticos ao atual modelo de segurança e, ainda que tenham preferência política, não é democrático que sejam submetidos a patrulhamento ideológico. O presidente da Fenapef, Luís Antônio Boudens, também divulgou nota dizendo que a entidade tem compromisso com todos os policiais federais, independentemente da linha de pensamento de cada um, e que vê com “cautela e preocupação” os riscos à liberdade de expressão em iniciativas que possam punir servidores por opiniões.
Especializado em inteligência, Werneck acha que o levantamento de informações para identificar grupos e orientar as ações de governo até seria uma atividade normal se feito pelo órgão apropriado – que, segundo ele, é a Abin – e restrito ao caráter de um informe, sem difusão, por não ter valor jurídico de investigação. “Não é competência do Ministério da Justiça. É agressivo e antidemocrático porque expõe e criminaliza quem tem ideologia”, afirma o policial. “Causa perplexidade por revelar falta de coordenação. De outro lado, beira a infantilidade institucional”, cutuca.
O inteiro teor do dossiê, que tem os perfis dos policiais e suas preferências políticas e ideológicas, será conhecido esta semana. Abalado com a revelação, o ministro André Mendonça encaminhou a listagem para a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso, controlada por dois governistas, o senador Nelsinho Trad, presidente, e o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, vice-presidente. O deputado, aliás, se deu ao trabalho de enviar à embaixada dos Estados Unidos, em Brasília, um outro dossiê antifascista, com 999 ativistas anônimos contrários ao governo.
Embora o documento do Ministério da Justiça tenha perfis, fotografias, informações sobre preferências políticas e ideológicas dos policiais e anexos (manifestos antifascistas e até um manual de ações terroristas, sem no entanto relacioná-lo ao movimento), Mendonça nega que se trate de um dossiê. Em ofício, ele prometeu encaminhar o documento, se solicitado, à ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, relatora de uma ação da Rede que pede investigação, punição dos responsáveis e o fim da espionagem política.
Os policiais antifascistas
Bem antes da conclusão do monitoramento da Dint sobre os policiais, a Polícia Civil do Rio Grande do Norte abriu um inquérito, no final de março, por recomendação do promotor Wendel Beetoven Ribeiro Agra, que pediu uma investigação contra 46 integrantes do Movimento Policiais Antifascismo (MPAF). No documento, o promotor fala em suspeitas de “organização paramilitar, milícia particular ou milícia armada” sobre um grupo de policiais estaduais e federais potiguar que propunha formar uma “brigada sanitária” contra o contágio do coronavírus em Natal, ainda no fim de março.
O MPAF reúne em todo o país cerca de 1.500 integrantes. São policiais identificados com a esquerda, contrários à faceta autoritária do atual governo, defensores de mudanças radicais no sistema de investigação e de segurança pública, e que se opõem à onda bolsonarista que contaminou os órgãos de segurança país a fora. Coordenado pelo policial civil do Rio Grande do Norte Pedro Paulo Mattos, o Pedro Che (o apelido deve-se à simpatia do policial por um dos líderes da Revolução Cubana, Ernesto Guevara), o movimento promove eventos e expõe às claras o descontentamento com o governo Bolsonaro.
Um deles é o agente federal aposentado Francisco Sérgio Bezerra Pinheiro, conhecido como Serjão, diretor de Seguridade Social da Fenapef, também listado no dossiê potiguar. “Quero acreditar que ele [o coronel Gilson Libório] estava cumprindo ordens. Se tomou a iniciativa por conta própria, o caos institucional está instalado e a República virá abaixo”, disse Serjão à Pública. Segundo ele, é necessário que o MPF investigue a fundo quem deu a ordem para confeccionar um dossiê que, além de prejudicar a carreira dos policiais, seria uma investigação política ilegal cuja finalidade é inibir e criminalizar movimentos sociais contrários ao governo. “Não há dúvida de que se trata de uma investigação política, como se estivéssemos voltando aos tempos da ditadura. Não é a natureza do Ministério da Justiça e Segurança Pública, mas é a natureza desse governo. É necessário saber quais os objetivos estão por trás disso”, diz. “Não somos milícia nem facção criminosa. Estamos numa luta democrática”, afirma Serjão, que se define como “geneticamente” comunista.
Serjão suspeita que as revelações sobre o dossiê representem apenas “a ponta do iceberg” de outras investigações ilegais conduzidas pelo Ministério da Justiça contra opositores de Bolsonaro. Ele diz que não há novidade no antifascismo. “O primeiro manifesto antifascista surgiu no dia 5 de outubro de 1988, com a promulgação da Constituição”, ironiza Serjão. Não é só o MPAF que se opõe a Bolsonaro. Pelo WhatsApp, um grupo fechado de policiais federais, conhecido como “grupo dos 100”, vem sendo ameaçado de represálias por críticas a Bolsonaro. Um dos integrantes desse grupo, que pediu para não ter o nome citado, contou à Pública que, embora a Polícia Federal não tenha aberto inquérito ainda, agentes de inteligência das superintendências estaduais têm ligado para colegas que se manifestam perguntando sobre preferências política e ideológica. “Nossa orientação é que peçam que as perguntas sejam feitas formalmente”, disse a fonte.
Pedro Che diz que há inegável vínculo entre a investigação contra policiais antifascistas do Rio Grande do Norte e o dossiê do Ministério da Justiça, que, segundo ele, foi informado já em abril pelo mesmo promotor que pediu o inquérito. O sindicalista afirma que, a partir da gestão do ministro André Mendonça, a Dint foi reforçada com a realocação de pelo menos dez agentes de inteligência que estavam em outros órgãos federais e passou a atuar em outros estados, como Pará, Ceará e Paraná. A ideia seria dar capilaridade nacional ao monitoramento para perseguir e, se possível, expurgar policiais que se opõem ao bolsonarismo nos órgãos de segurança.
“Fazem ações típicas de arapongagem em busca de informações que compliquem a vida do policial da ativa”, afirma o coordenador do MPAF, prevendo um efeito bumerangue contra o governo: “Nós vamos ficar mais fortes”, diz.
A demissão do diretor da Dint não será suficiente para abafar a crise. A motivação e os objetivos do dossiê estão sendo investigados pelo MPF no Rio Grande do Sul, são alvos de uma ação no STF e se tornarão mais claros com as sessões da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, que volta a funcionar nesta terça-feira. Por encomenda ou por sua conta e risco, o coronel Gilson Libório, pelo que se vê, deu um tiro no pé. (Com Agência Pública)