por Daniel Vaz de Carvalho
1 – De que falamos
Definir-se fascismo como o sistema que vigorou em Itália entre 1922 e 1943 ou outros com mesmas características, é extremamente redutor. É como se se definissem as flores como sendo rosáceas, as outras coisas diferentes, o que tornaria a botânica uma confusão inextricável. Mas é isto que vários pretendem no campo social.
Para além dos vários modelos de concretização, o fascismo é a forma mais reacionária e terrorista da ditadura do grande capital financeiro e monopolista. Outra característica é o ataque às liberdades democráticas, organizações sindicais e progressistas, visando a sua supressão, passando a ser consideradas “subversivas”.
O fascismo da primeira metade do século XX diferencia-se do fascismo do final do século XX e o atual. O primeiro, face à crise capitalista, procurava instaurar o capitalismo monopolista de Estado (CME), adotando algumas medidas do tipo keynesiano. No atual, trata-se de impor o capitalismo monopolista transnacional CMT). Além disto, se no primeiro caso era anti-parlamentar, atualmente aparece mascarado “democracia” recebendo o beneplácito dos EUA e da UE.
Em qualquer dos casos, há que distinguir entre o fascismo dos países hegemônicos / imperialistas e o fascismo nos países de capitalismo dependente. Nos países dominados pela Alemanha nazi, apesar de um aparente nacionalismo, a sua política interna e externa estava completamente dependente de Berlim. Algo semelhante ocorre nos países submetidos ao imperialismo norte-americano. Para instaurar este tipo de domínio, tal como nos anteriores processos fascistas, recorre à agressão militar (Coreia, Vietnan, Iraque, Líbia, Síria, etc.) São aplicadas sanções, são promovidos golpes de Estado, assassinatos políticos, etc. O Chile sob Pinochet, prefigura o terror instituído na América Latina, a Indonésia sob Suharto prefigura os crimes cometidos na Ásia e em África.
Esta sucessão de guerras de rapina e respetivo mundo de horrores, é escamoteado pelos mídia, levado à conta de instaurar a “democracia” (eufemismo para o CMT) ou apresentar as próprias vítimas como responsáveis pelo que lhes acontece. É o esquema usual dos agressores, tanto domésticos como imperialistas.
O fascismo ou, se se preferir, os fascismos são capitalismo. São formas de organização política e social a que o sistema capitalista recorre para garantir a sua lei econômica fundamental: a maximização da taxa de lucro monopolista. Sem este sistema ser substituído, a possibilidade de retorno a formas fascistas está sempre presente. [1]
Dito “liberal” ou “iliberal”, na prática ambos adotando o neoliberalismo, o capitalismo sempre se encaminha para formas fascistizantes se a isso não se opuser a luta dos trabalhadores. A social-democracia bem pode tentar convencer que outro capitalismo é possível. O facto é que não é possível a democracia manter-se sob o sistema monopolista, tal como sob o imperialismo apenas existe uma liberdade condicional.
A social-democracia de várias tonalidades, com as suas políticas de ataques ao marxismo e conciliação com o grande capital, parece não entender que desta forma abre as portas à direita e extrema-direita. E não entende porque supõe poder submeter a lei fundamental do capitalismo às instituições democráticas. Assim aconteceu e acontece, na Grécia, Itália, Polônia, Hungria, etc. Recorde-se que a ascensão de Hitler a Chanceler, se dá quando estava a perder votos, a esquerda de novo a recuperar. O “centro” e a “direita”, deram-lhe então o apoio necessário. Conforme disse Aquilino Ribeiro, referindo-se à Alemanha dos anos 20 do século passado: “A social-democracia pôde continuar a chocar com encardido conservantismo os pintos nacionalistas”. [2]
2 – A propagação do vírus
O vírus fascista encontra campo na frustração social que atinge muitas pessoas, revoltadas e impotentes perante as políticas de direita postas em prática. As mídia promovem este estado de espírito, dado que a alternativa libertadora através de políticas de esquerda não é divulgada nem esclarecida, pelo contrário omitida, deturpada, caluniada.
O aposentado ou o trabalhador com algumas centenas de euros por mês, no limite da pobreza e exclusão social, acaba facilmente por se revoltar contra o que recebe, alinhando pela insídia a favor de partidos que lhe retirariam ainda mais direitos e rendimentos. Foi isto que aconteceu com as políticas do governo PSD-CDS.
Quando não se tem respostas para a frustração, ou seja, a consciência de classe não existe, criam-se explicações a partir de uma realidade construída de pequenos acontecimentos que são acessíveis (a superfície das coisas) procurando-se apontar culpados: marxistas, sindicatos, emigrantes, os “subsídio dependentes” (não, não são o grande capital e a finança, mas trabalhadores, pensionistas e reformados!), políticos corruptos (todos!) que retiram aos pobres o que lhes falta.
Os sindicatos são qualificados como parasitas privilegiados, servindo-se dos trabalhadores para os seus interesses pessoais, prejudicando as empresas. A intenção é suprimir os direitos laborais e o tratamento mais favorável para a parte mais fraca. Tratam-se de práticas comuns, embora com escalas diferentes da social-democracia à extrema-direita. A ideia está contida nos objetivos da “economia de mercado”, que com a plena “flexibilização laboral” atingiria o seu “ótimo”, colocando as pessoas, com exceção dos oligarcas, na insegurança quanto ao futuro e ao nível da sobrevivência.
Estes desideratos no campo laboral correspondem a um dos objetivos de qualquer agressor: isolar e fragilizar as vítimas. Isolar e fragilizar a tal ponto que o trabalhador perde capacidade de resistência, acabando, para sobreviver, de aderir à lógica do agressor e culpar-se a si próprio ou aos seus semelhantes, mesmo descarregando as suas frustrações nos mais fracos: daqui o racismo. Sem direitos laborais, a reação habitual é cada um por si, tentando adaptar-se à situação de dependência, adotando a lógica dos que os dominam, pensando ser esta a melhor forma de sobrevivência.
Curiosamente, seja o “mercado livre”, a desregulamentação financeira, a redução de impostos aos mais ricos, a precariedade laboral, tudo isto é propalado como sendo no interesse dos trabalhadores, permitindo a criação de riqueza (para quem) e emprego. O que na realidade cresce são as desigualdades, a precariedade, o desemprego sempre à espreita.
Os salários ficam sujeitos às leis de mercado, o que não se aplica aos vencimentos dos administradores, estes dependem dos acionistas, isto é, deles próprios. Como regra geral não existe pleno emprego, com a lei da oferta e da procura, os salários inevitavelmente tendem a descer.
Temos assim um fator de crise, dado que só se vende o que os salários podem comprar – e não são os milhões de euros auferidos por administradores, levados em boa parte para paraísos fiscais e especulação financeira que resolvem o problema, sendo, sim, outro fator de crise.
Porém, se a procura de trabalhadores exceder a oferta (falta de mão-de-obra) os salários irão subir? Nem por isso. Historicamente no capitalismo, o governo, liberal ou não, intervém contra a lei da oferta e da procura, impedindo a alta dos salários. [3] As forma serão diferentes conforme a relação de forças sociais ou a existência de uma Constituição democrática. Neste caso, como se tem visto, desenvolve-se a precariedade, alteram-se as leis laborais, retira-se força à contratação coletiva, o sindicalismo reivindicativo é combatido. É estabelecida a “concertação social”, com a colaboração do divisionismo sindical, pronto a cedências.
A formação profissional, que se tornou importante fonte de corrupção e fraudes, particularmente nos anos 80, serviu para reduzir o preço da mão-de-obra qualificada. É também o caso de atualmente jovens licenciados auferirem salários reais inferiores aos de há 30 anos.
3 – Contra o obscurantismo, mais luz, mais luz!
As políticas de direita mostraram a sua completa falência econômica, financeira, social, ambiental e colocam a paz cada vez mais em perigo. Face a estas falhas, poder-se-ia pensar estarem criadas as condições para a substituição do sistema capitalista. Quanto às condições objetivas, sim existem e há muito, mas não as subjetivas.
Se não fosse a audiência que lhes é concedida pelos mídia, as políticas da direita e extrema-direita não passariam de mera ignorância e obscuras lucubrações. Como iria o “liberalismo”/neoliberalismo resolver qualquer crise, fosse econômica e financeira (originada pelos seus processos), social (idem) ambiental (idem) ou de saúde pública (em parte, idem)? Com o Estado “pequeno, mas forte”? Com que recursos?
A direita, extrema-direita e as mídia ao seu serviço, procedem como na magia, em que um dos segredos consiste no espectador concentrar o seu olhar no que não é essencial para o efeito pretendido. Se estes artistas não explicassem que se trata de imaginação, estudo e treino, muitos acreditariam tratar-se de poderes sobrenaturais.
A mistificação é que, por muito liberais que queiram parecer, nem uma palavra dizem contra o sistema monopolista, a finança especuladora, a infame “concorrência fiscal”, os principais predadores da riqueza criada pela força de trabalho.
Agitar a indignação na superfície das coisas é a forma de esconder o poder oligárquico e seus procedimentos. O objetivo é estabelecer o descrédito das instituições democráticas, desorientar as pessoas com a ideia de um caos instalado, de modo a favorecer o aumento de poder da oligarquia. A exceção, quando não a mentira, é apresentada como regra. A emoção negativista, impede a análise racional, que seria a forma de se encontrarem respostas consistentes. Perante a reposição da verdade, adotam o insulto ou o tom escarninho. Que importa, a calúnia e a deturpação fazem o seu caminho nos media, como polêmica entre opiniões.
Pretendem mudar a Constituição, eliminando tudo o que possa ser progressista, alterar as leis eleitorais tornando-as tão ineficazes para uma alternativa política como no salazarismo. Neste objetivo, estão com variantes, os partidos da direita e extrema-direita: PSD, CDS, Iniciativa Liberal, Chega.
A contestação às comemorações do 25 de abril e do 1º de maio, totalmente dentro da lei, foram postas em confronto com as pascais e do 13 de maio em Fátima, embora estas fossem decididas pela hierarquia católica, serviu para lançar uma manobra de diversão, transformada em “caso politico-midiático”. Argumentos sem nexo e meras calúnias (até de imagens falsas se serviram) foram postos em pé de igualdade – ou nem isso – com a realidade dos fatos.
A ignorância política, a incutida noção de se afastar de tudo o que lhes diz socialmente respeito, leva parte do proletariado a aderir à extrema-direita. Arrastados por este falso radicalismo, mascarado de justiceiro, aderem ao anti sindicalismo, que limitaria o direito de propriedade (!!).
O objetivo de pôr fim ao imposto progressivo e ao “Estado Social” é retomado sob o lema reacionário de François Guizot no século XIX, “Enriquecei-vos”. As consequências foram evidenciadas por grandes escritores da época, mostrando a miséria e a opressão que atingia o proletariado.
O que os trabalhadores passaram a usufruir foi obtido por meio de intensas lutas sindicais, greves, ação política de partidos e organizações marxistas. Mas como são contra tudo isto, deveriam prescindir das 8 horas de trabalho diário, aceitando como antes 12 ou mais horas diárias, Prescindir de dois dias de descanso semanal, de férias pagas e respetivo subsídio, tal como no Natal. Prescindir de licenças médicas pagas e subsídio de desemprego. Deviam aceitar que o patrão os pudesse despedir por motivo de doença, que os despedimentos pudessem ser feitos unicamente segundo a vontade do patrão, de acordo com o “mérito” que ele definisse ou qualquer outra razão. [4]
Também não deveriam querer SNS, mas aceitar o princípio do utilizador-pagador e se quisessem saúde ou educação para filhos e netos, teriam que as pagar (ao grande capital das privatizações!). Simplesmente, eliminar direitos sociais que definem a cidadania. Para a miséria assim criada, apontam a medieval caridade privada ou o abono de residuais cheques para pagamento às entidades privadas. Na realidade, não se consegue entender se tais convicções são apoiadas por gente que adere à estupidez por ser má, se se torna má por aderir à estupidez.
Partidos de extrema-direita, mascarados ou não de liberais, foram buscar a ideologia mais reacionária que o século XIX produziu, como se fossem inovadores radicais contra o sistema… democrático.
A extrema-direita não deixa de falar em liberdade. Não haja ilusões, também a Constituição do fascismo salazarista previa no seu artigo 7º liberdade de expressão, reunião e associação. Mas tudo isto era anulado por legislação, contra as forças “subversivas”.
Para a direita, a liberdade serve para limitar a democracia: direitos e liberdades são para a propriedade capitalista, com os sistemas monopolista e financeiro a controlarem a economia. O que eram antes as “liberdades feudais” – de oprimir a generalidade do povo – torna-se a liberdade para a “propriedade”, em primeiro lugar para o grande capital.
Neste contexto, o Estado é ardilosamente remetido para o papel de árbitro e regulador. Como árbitro, alinha do lado do capital em nome da “economia”. Como regulador, se esta função fosse tomada a sério implicaria recursos que não explicitam e não estariam disponíveis dentro do sistema proposto. Na realidade, o Estado acaba por ser capturado pelos negócios que deveria regular, seja na finança (Banco de Portugal, a fazer vista grossa à fraude e má gestão), seja nas infraestruturas (contratos de PPP), seja na proteção ambiental, seja no âmbito laboral.
A indignação fomentada por frustrações, a estratégia do irracionalismo, visa o adormecimento da razão, promovendo a líderes nulidades políticas, criminosos, tresloucados ou meros fantoches corruptos.
O que a extrema-direita tem para oferecer é, tal como no fascismo, um mundo triste, repressivo, de desigualdades, baseado no racismo (negros, ciganos, emigrantes), mentiras recalcadas e obscurantismo, acrescendo o ódio ao humanismo marxista, para o qual não têm limites as calúnias.
[1] resistir.info/v_carvalho/disfuncionalidade_1.html , resistir.info/v_carvalho/disfuncionalidade_2.html
[2] A Alemanha ensanguentada, Ed. Bertrand, resistir.info/v_carvalho/papel_da_sd.html
[3] No fascismo salazarista, chegou a ser ordenado o fecho de fábricas que tinham cedido a reivindicações dos trabalhadores, só abrindo após serem canceladas as reivindicações, isto acompanhado de prisões e exílios.
[4] Retomamos neste parágrafo uma irônica “Declaração Anti-Greve” de que desconhecemos o autor.
Fonte: Resistir.info