A queda de Damasco às mãos da Al-Qaeda e dos seus vários heterônimos representa uma vitória para a estratégia ocidental e da OTAN
José Goulão
Um primeiro aviso ao leitor. Esta ainda é uma leitura quente do que está acontecendo na Síria, e leituras quentes são um risco, especialmente quando são feitas de fora e sob uma enxurrada de bobagens da mídia que factualmente dizem a mesma coisa, lugares-comuns, e então espremem a imaginação em uma luta imbecil presa nos campos da audácia, mentiras e, acima de tudo, ignorância.
Por tudo isso, os leitores me perdoarão por algumas imprecisões quanto ao futuro próximo, pois entre as certezas possíveis faltam muitos elementos factuais.
Uma primeira certeza: o presidente Bashar Assad caiu, essencialmente porque piorou a situação nos últimos tempos, desde 2015, ao não dotar o exército nacional de mais e renovados meios para resistir ao crescimento e reforço da capacidade militar, que não eram segredo, da al-Qaeda (renomeada Hayat Tharir al-Sham – HTS – por recomendação das forças de intervenção estrangeira ocidentais, desejando assim disfarçar seu apoio direto ao terrorismo da organização fundada por Bin Laden). Além disso, Bashar Assad e seus comandos militares minimizaram uma situação de guerra que só diminuiu de intensidade depois de 2017 e em uma situação em que 30% do território permaneceu nas mãos de grupos armados servindo interesses estrangeiros e com o objetivo de derrubar o regime.
Assad também enfraqueceu sua posição ao rejeitar um projeto de Constituição proposto pela Rússia, na esteira do processo de Astana (participação de Moscou, Ancara e Teerã), elaborado com estrito respeito ao direito internacional e às normas da ONU.
Uma segunda certeza: os terroristas da Al-Qaeda ou HTS, liderados pelo famoso seguidor de Bin Laden chamado Abu Mohammad al-Julani, puseram as mãos em Damasco para se apoderarem dos instrumentos do Estado – os mais antigos do mundo – e assim tentarem estender, quando sentirem que chegou a hora (se chegar), a sua “lei islâmica” por todo o país.
Terceira certeza: al-Julani e seu grupo continuam sendo considerados terroristas pelos Estados Unidos da América (e também pela União Europeia); Todas as tentativas de setores do estado profundo americano de remover a Al-Qaeda, a Al-Nusra ou o HTS, seus homônimos, da lista de grupos terroristas foram vetadas pelos próprios órgãos legislativos dos Estados Unidos: o Congresso e o Senado.
Isso não impediu, no entanto, que al-Julani, com barba bem aparada, penteado e trajes de estilo ocidental, fosse entrevistado amigavelmente pela Voice of America, porta-voz da CIA e do regime norte-americano, para expor sua nova linguagem e simular distanciamento – visual e na fala – de sua essência terrorista. Detalhe horrível: os Estados Unidos ainda oferecem 10 milhões de euros a quem contribuir para a captura e/ou morte de al-Julani.
A biografia deste capo fascista explica que tanto a Al-Qaeda quanto o ISIS ou Estado Islâmico lutaram para recrutar o então jovem e promissor al-Julani, que escolheu se juntar ao grupo de Bin Laden. E a população da região de Idlib, permanentemente ocupada pela Al-Qaeda desde o início da intervenção estrangeira, pode muito bem explicar, por sua própria experiência, o terror de ser governada por al-Julani.
Quarta certeza: A queda de Bashar Assad e a tomada do poder por al-Julani – foi o que aconteceu, não importa o quanto a rede de propaganda global tente garantir que não seja bem assim – significa uma vitória para a intervenção militar dos Estados Unidos, da União Europeia e da OTAN por grupos terroristas iniciada em 2011 na Síria. Por outro lado, reflete uma derrota para a Rússia, que foi forçada a deixar Assad cair quando ele decidiu se desviar dos contornos da aliança com Moscou. Além disso, foi confirmado que a prioridade de Moscou é resolver favoravelmente os problemas criados pelo regime nazista-banderista em Kiev.
Quinta certeza: agora começa verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até agora, fomos confrontados com uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses econômicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os Estados Unidos na vanguarda, que, pela voz de Donald Trump, no seu primeiro mandato presidencial, admitiram ter roubado petróleo sírio.
Tudo indica que será uma guerra civil entre as diferentes facções que lutaram contra Assad, principalmente as Forças Democráticas Sírias (curdos do YPG e contingentes do ISIS treinados na base de al-Tanf, ocupada por tropas dos EUA), e o Exército Nacional Sírio (um braço das forças armadas da Turquia e da OTAN), cada um com suas próprias zonas de influência. Além disso, há uma nebulosa de grupos armados e milícias, cada um com seus próprios interesses regionais, religiosos e étnicos que não ficarão de fora dos confrontos que ocorrerão durante o falacioso “período de transição”.
As Forças Democráticas Sírias também são apoiadas militarmente pelos Estados Unidos, como o HTS, mas perseguidas pela Turquia como parte de sua guerra contra os curdos onde quer que estejam. Nesta frente específica, há, portanto, uma oposição militar entre os regimes de Washington e Ancara, ou seja, uma guerra fratricida dentro da OTAN. Na prática, todas essas organizações, incluindo o HTS, são apoiadas pelos Estados Unidos e pela OTAN, formando o chamado grupo de “rebeldes moderados” – apesar de haver uma facção considerada “terrorista” por Washington. Outro exemplo da conhecida coerência ocidental, “nossa civilização”.
Uma vitória para o tão procurado Benjamin Netanyahu
Sexta certeza: A tomada do poder por al-Julani significa uma enorme vitória para o sionismo liderado por Benjamin Netanyahu, um conhecido aliado dos terroristas islâmicos, a ponto de dar-lhes retaguarda em campos e hospitais no interior de Israel e no setor ocupado das Colinas de Golã. São conhecidas centenas de bombardeios aéreos israelenses contra território sírio em apoio ao HTS e também como parte de sua guerra contra o Hezbollah e o Irã.
Esta vitória do terrorismo islâmico e a previsível divisão da Síria abrem outro caminho para atingir o maior objetivo do sionismo internacional, a criação do Grande Israel, do Nilo ao Eufrates, rio que atravessa o Leste e o Norte do território sírio.
Sétima certeza: a queda de Damasco é uma grande vitória para a Turquia dentro do escopo da teoria expansionista do neo-otomanismo praticada pelo neo-sultão Erdogan. Ancara também tem um caminho muito mais livre para continuar a perseguição ao povo curdo dentro da Síria.
Oitava certeza: a nova situação criada em Damasco fornece condições para que mais um passo importante seja dado na estratégia sionista dos Estados Unidos, da OTAN e da União Europeia para desmembrar os grandes estados laicos do Oriente Médio; o objetivo é criar pequenas entidades étnicas e religiosas controladas de fora e inofensivas, facilitando assim a expansão do controle militar e econômico sionista e imperial sobre o Oriente Médio, além de reforçar o domínio econômico e o saque das matérias-primas da região, principalmente petróleo e gás natural. Essa estratégia deu certo no Iraque e na Líbia e os resultados estão aí para todos verem.
Uma nota para lembrar: o caso sírio demonstra, mais uma vez, que uma das estratégias ocidentais mais importantes no caminho para o globalismo é o desmembramento de Estados e organizações transnacionais que defendem a validade do direito internacional e não reconhecem a ordem internacional baseada em regras. A intenção expressa expressa pelos círculos ocidentais de dividir a Rússia em uma miríade de estados, após a implosão da União Soviética, agora teve uma confirmação em larga escala.
Nona certeza: o Estado mais antigo do Mundo, um mosaico de comunidades, religiões, etnias e confissões que permaneceram unidas e harmoniosas durante séculos, até o início da invasão ocidental em 2011, caminha rapidamente para o colapso e a extinção, não sendo difícil prever perseguições e terror contra comunidades minoritárias, notadamente os cristãos ainda apegados a ritos e tradições da época de Jesus Cristo.
Desde o início da agressão ocidental, o número de cristãos na Síria caiu de sete para três por cento da população. Em inúmeras aldeias cristãs, como al-Sukhna, Kanayé, Maloula, Chabadin e Bakha, as populações sobreviventes podem testemunhar o terror e os episódios de assassinatos aos quais foram submetidas pelos chamados grupos islâmicos “rebeldes” e “moderados” em seu papel de promotores da OTAN. Nas últimas três aldeias mencionadas, ainda se fala aramaico, uma língua que era usada há dois mil anos, nos tempos de Cristo.
Décima certeza: a queda de Damasco nas mãos de terroristas sunitas, aliados objetivos do sionismo, encoraja ainda mais o Estado de Israel a desenvolver a tão desejada guerra contra o Irã xiita, outro possível caminho para a guerra nuclear. A transformação e eventual extinção da Síria enfraquece profundamente o chamado Eixo da Resistência, única entidade que, no cenário internacional e regional, tem resistido aos desígnios do sionismo internacional e lutado consistentemente pela aplicação do direito internacional para que sejam respeitados os direitos humanos inalienáveis do povo palestino.
Democracia? Nem a vejo
Décima primeira certeza: da mesma forma, o Líbano é ainda mais frágil diante do sionismo porque a ascensão sunita na Síria é um golpe gravíssimo para o Hezbollah, movimento de base xiita responsável pela resistência nacional e pelas derrotas humilhantes infligidas ao Estado de Israel, mantido em respeito às suas ambições em território libanês. Israel pretende ocupar parte do sul do Líbano como tampão para ataques contra a região norte do país, a Galileia, além de, desde já, ter praticamente garantido livre acesso às jazidas de petróleo recentemente descobertas no Mediterrâneo Oriental e que vem competindo com Beirute, naturalmente com objetivos cleptomaníacos diante dos quais o direito internacional e o direito marítimo não valem nada.
Décima segunda certeza: a história das guerras imperiais, especialmente as mais recentes desde a longa e fracassada intervenção militar no Afeganistão, prova que essas ações terroristas nada têm a ver com a implementação da democracia e a democratização dos países atacados – ao contrário do que rezam a propaganda e a opinião única que nos subjuga ou, pelo menos, pretende nos subjugar. Vejamos o retorno do Talibã a Cabul, a situação caótica das potências regionais fragmentadas no Iraque – com o governo oficial entrincheirado em fortificações além da “linha verde” em Bagdá – e o desaparecimento, em termos reais, do Estado líbio: resta claro o que democracia e democratização significam no discurso ocidental.
Décima terceira certeza: o caso sírio é mais um exemplo do tipo de respeito que os estados-membros de organizações e alianças ocidentais cultivam em relação aos acordos que assinam com terceiros. A Turquia chegou a um acordo com a Rússia e o Irã em setembro de 2017 em Astana, segundo o qual faria todo o possível para reduzir a intensidade dos combates, a fim de criar condições para estabelecer uma plataforma política capaz de garantir uma nova realidade nacional síria, mais pacífica e mais inclusiva.
O regime de Ancara, em vez disso, aproveitou o tipo de limbo criado por este acordo para reforçar o apoio ao HTS e ao Exército Nacional Sírio e criar condições para a revolta armada com efeitos devastadores que agora ocorreu.
Em relação ao acordo de Astana, assim como ocorreu com os acordos de Minsk sobre a Ucrânia, ficou demonstrado que países da OTAN, como França, Alemanha e Turquia, e a própria aliança, firmam acordos com outras nações e entidades deliberadamente de má-fé, explorando, em última análise, as decisões que visam buscar soluções pacíficas e as garantias por eles dadas como instrumentos para promover o retorno à guerra com maior capacidade e intensidade.
Esse comportamento é, como demonstrado, um pilar da essência da OTAN. E o regime russo caiu na armadilha duas vezes em menos de uma década.
Décima quarta certeza: há uma aliança operacional militar entre o nazi-banderismo do regime de Kiev e os grupos fascistas que reivindicam o islamismo e agora tomaram o poder em Damasco. O regime de Zelensky treinou bandos de mercenários “islâmicos” em território ucraniano para então se infiltrarem na Síria, usando os serviços úteis dos banderistas de Azov e conselheiros da OTAN – em “reserva”, é claro, presentes no terreno pelo menos desde o golpe da Praça Maidan em 2014. A colaboração entre as forças nazistas ucranianas e os chamados terroristas islâmicos, especialmente aqueles de territórios da antiga União Soviética, remonta a pelo menos 2009, de acordo com investigações independentes que foram publicadas – e censuradas na mídia global.
Terroristas na Síria receberam informações confidenciais do GRU, o serviço de espionagem e polícia política do regime de Kiev, conforme revelado por líderes desta instituição; Além disso, o aparato militar Banderista forneceu drones e meios de guerra eletrônica para a Al-Qaeda e similares, que eles usaram na fase decisiva da agressão estrangeira, identificando alvos e “cegando” as comunicações do exército a serviço de Assad.
Conclusão a ser tirada imediatamente: a queda de Damasco nas mãos da Al-Qaeda e seus vários heterônimos representa uma vitória para a estratégia ocidental e da OTAN, em particular o recurso operacional ao chamado terrorismo islâmico para destruir estados fortes e seculares no Oriente Médio. Esta vitória foi alcançada contra a corrente da história atual em direção à multipolaridade e pode significar um novo sopro da ordem internacional imperial e colonial “baseada em regras” para se impor ao estabelecimento global da validade do direito internacional. No entanto, como aconteceu no Afeganistão, onde o Talibã sucedeu o Talibã vinte anos depois; ou na Líbia, onde o caos criado pela invasão atlantista dificulta ao Ocidente a exploração completa dos recursos naturais do território; ou no Iraque, onde as forças de ocupação da OTAN, entre as quais predomina o contingente norte-americano, não têm um momento de paz devido aos sucessivos ataques de forças patrióticas, pode acontecer que o sucesso alcançado em Damasco não passe de uma vitória patética de Pirro, embora criminosa, devastadora e sangrenta, e o feitiço acabe se voltando contra o feiticeiro.
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